Emerjo do banho após uma vida inteira. Não encontro Caleb nem mais ninguém no curto caminho até o quarto. Me visto apressada, com roupas que ficam alguns centímetros largas demais, e então decido sair.
Atravesso o corredor e encontro uma escada. Desço-a e sigo os sons indistintos de conversa. A casa é grande, com mais sala de jantar, sala de estar e sala de visitas, e quando enfim chego à cozinha, parece que já estou andando há anos.
A cozinha é tão grande quanto o resto da casa, totalmente equipada. Em uma ilha central que divide o ambiente, Caleb está apoiado nos cotovelos, conversando com uma garota. Não preciso perguntar para saber que são irmãos. Ela é a versão feminina dele, embora um bom palmo mais baixa, mais ou menos da minha altura. Os dois se viram para mim quando me ouvem chegar.
— Ah, você! — ele exclama, se endireitando — As roupas serviram.
Olho para baixo, para os jeans novos, largos nos quadris, e a camiseta branca cuja gola larga quase mostra meu colo. Cruzo os braços e tento sorrir.
— Serviram. Obrigada.
— Essa é a minha irmã, Christine. Chris, pros íntimos. — ele apresenta, e ela se aproxima. Tem as mesmíssimas feições do irmão, mas nela, os traços parecem curiosos, e não bondosos. Como se eu fosse um objeto interessante que ela precisa estudar.
Meu estômago se revira com o pensamento, mas eu ignoro.
— E você é a garota sem nome. — ela ergue as sobrancelhas, parecendo impressionada — Deixou meu irmão maluco ontem à noite.
— Me desculpe, eu não queria causar problemas. — me apresso em dizer, mas ela sorri, um sorriso irônico, que marca sua personalidade.
— Relaxa. Ele estava mesmo precisando de um pouquinho de emoção. — replica, com uma piscadela.
Ela volta para o balcão e aponta para o banquinho ao seu lado.
— Está com fome? Temos comida.
— Comida congelada. — Caleb completa, e Christine dá de ombros.
— É comida. Se fosse dia útil, a Dorothea estaria aqui para cozinhar, mas já que não é...
— Que dia é hoje? — pergunto, de repente. Não sei por que é importante, não sei se faz diferença, mas, de alguma forma, faz. Mesmo que eu não me lembre, mesmo que eu não saiba, faz.
— Sábado. — Caleb responde, calmamente — Eu estava voltando da faculdade ontem à noite quando te encontrei.
Sábado. Tenho a impressão de que isso quer dizer alguma coisa, mas não sei dizer o que. Me aproximo do balcão e sento ao lado de Christine, bem em frente a Caleb.
— Então, meu irmão me disse que você não se lembra do seu nome. — Christine diz, num tom levemente condescendente. Sinto que deveria me ofender, mas não consigo. Não a julgo por estar me julgando — Você sabe o que aconteceu, antes de vocês se encontrarem?
— Eu acordei no banheiro. — digo, devagar. Se fechar os olhos, ainda me vejo na estação de trem — Estava... desorientada. Mas antes disso, eu não me lembro.
Os dois trocam um olhar, e eu finjo não perceber.
— Você sabe o que você tomou? — ela insiste, deixando Caleb alterado.
— Christine...
— O que? Não estou dizendo que ela é uma viciada, mas ela obviamente estava sob o efeito de alguma coisa. Boa-Noite Cinderela, talvez.
Balanço a cabeça, as memórias bagunçadas. Tenho um flash de algo sendo injetado na minha corrente sanguínea, mas não sei se é uma memória real ou se foi fabricada pela minha necessidade por respostas. Opto por não falar nada.
— Não me lembro. — digo, com um suspiro frustrado — Não me lembro de nada.
Eles não respondem, e subitamente, percebo que sou um estorvo. Eles já fizeram muito mais do que deveriam por mim — me resgataram, me deram uma boa noite de sono e roupas limpas. Não tem obrigação nenhuma de me ajudar. Preciso sair daqui.
— E ir pra onde? — é Caleb quem fala. Não tinha me dado conta de que tinha dito aquilo em voz alta até então — Você não sabe quem é, de onde veio. Não tem pra onde ir.
Suas palavras me atingem com força, e me encolho. Não tenho para onde ir. Não tenho passado, não tenho futuro. Não tenho um nome. Tenho só as roupas do meu corpo, e nem mesmo elas são minhas.
Não tenho nada.
— Venha. Coma alguma coisa. Vamos pensar no que fazer. — ele diz, então.
Derrotada, obedeço.
ESTÁS LEYENDO
No Escuro
Ficción General"Com dificuldade, me coloco de pé. O mundo gira à minha volta, entrando e saindo de foco, como uma câmera quebrada. Cambaleio, e me apoio em algo duro e gelado; uma pia. Apoio-me nela, e ergo os olhos para um espelho sujo na parede. Não consigo dist...