Capítulo 10

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— Que merda foi aquela? — é a primeira coisa que Christine diz quando chegamos. Passamos o caminho todo em silêncio no carro, e eu podia ver sua expressão dura pelo retrovisor.

Agora, ela joga a bolsa sem cerimônia sobre o balcão da cozinha e encara eu e Caleb com um olhar de fúria e traição. Há espaço o suficiente para que eu passe por ela e fuja pela tangente, mas de alguma forma, é como se Christine estivesse bloqueando todas as saídas. Não consigo me mexer.

— Qual parte? — Caleb responde, sem se impressionar. A vida, imagino, o treinou para situações como aquelas, para lidar com os rompantes da irmã sem se deixar abalar.

— Lá no café. O blecaute.

— Foi só isso, Christine, um blecaute.

— Merda nenhuma! — ela cruza os braços, erguendo o nariz numa pose desafiadora — Haviam luzes de emergência na sala, e elas não se acenderam. Quando a luz voltou, não era como se o computador tivesse reiniciado. Era como se tivesse permanecido ligado o tempo todo, mas nós não pudéssemos ver.

Caleb não diz nada, e o olhar de Christine recai sobre mim. A verdade está entalada em minha garganta, mas não consigo me forçar a dizê-la; seria como uma admissão de culpa, um atestado de loucura. Seria aceitar que sou uma aberração. E não posso. Não quero. Não sei como.

— Não sei o que você espera que eu diga. — Caleb continua, então, tão indiferente que eu poderia jurar que ele não sabe de nada — Caiu a energia, e então voltou. Fim da história.

Christine não parece nada convencida, mas ele segue em frente:

— De qualquer maneira, vamos focar no que interessa. Temos provas agora. Pegamos a placa da van.

— É, pegamos. — Christine concorda, seu olhar ainda se demorando em mim, desconfiada. Por fim, parece ser vencida pela própria curiosidade e suspira — Mas acho que é fria. Vou pesquisar, mas duvido que dê alguma coisa. Quem quer que tenha começado isso, não seria tão descuidado.

— Você se lembrou de alguma coisa, não lembrou, Mayumi? — Caleb vira-se para mim de repente — Lá dentro, no escritório.

Fecho os olhos e faço que sim. Ainda consigo ver as luzes muito brancas, sentir o cheiro de hospital, sentir a picada da agulha. Como antes, a lembrança me engolfa, mas é mais fácil desprender-me dela desta vez. Quando abro os olhos, Caleb está na minha frente, encarando-me com preocupação. Ele não me toca, mas sinto-me abraçada mesmo assim, como se a proximidade fosse o bastante.

— Não precisa nos contar, se não estiver pronta. — acrescenta, mais baixo.

— Mas iria ajudar pra caramba se contasse. — Christine comenta, sem cerimônias.

Engulo em seco. É difícil, falar sobre isso; não apenas pela dor quase física das memórias, mas por me faltarem palavras. Sei o que vi, do que me lembrei, mas é difícil descrever. Respiro fundo.

— Lembrei do... laboratório. — digo, devagar. Hospital parece uma palavra benévola demais para ser usada nesse contexto; não fui curada de nada, até onde me lembro, e sim transformada, danificada — Lembrei de um médico.

— Consegue descrever o rosto dele? — Christine se adianta, como uma profissional. Baixo a cabeça, me sentindo inútil.

— Não. — murmuro — Só me lembro dos olhos. Azuis, vibrantes.

Os irmãos não respondem. Respiro fundo mais uma vez e cruzo os braços, abraçando meu próprio corpo. A mera memória faz com que eu trema.

— Ele dizia que eu tinha que me comportar. — continuo, uma palavra de cada vez — Que, se eu ficasse quieta, acabaria mais rápido, e eu poderia comer. Mas eu não queria comer. Só queria sair dali.

Sinto meus pulsos apertados, como se estivessem presos. Tento puxar minhas pernas, mas sinto que não consigo movê-las. Minha boca está seca, a pressão de uma mordaça sobre elas quase me impedindo de falar. Mesmo assim, encontro minha voz.

— Eu quero dizer que não quero, que não vou, que não posso, mas não consigo. Não consigo falar. — digo — E quero me soltar, mas não consigo. E então ele vem, e ele... ele...

Só percebo que estou me debatendo quando as mãos gentis de Caleb encontram meu rosto. Seu toque é tão leve que quase não percebo, mas pela segunda vez em um único dia, é como se ele me trouxesse de volta à terra. Paro, abro os olhos, e o vejo parado diante de mim. Sua respiração faz cócegas na minha pele.

— Está tudo bem. — ele diz, baixinho — Você está livre. Não vai mais ter que voltar para lá.

Faço que sim, e após um instante de hesitação, ele me solta. Minha pele está quente onde ele me tocou, formigando de um jeito agradável.

Ele se afasta, o rosto ficando corado. Christine desapareceu sem que eu percebesse, sua bolsa ainda jogada sobre o balcão da cozinha. Por fim, Caleb me diz:

— Vá descansar. Eu te chamo quando a comida estiver pronta.

Aceno silenciosamente e corro para o meu quarto, onde, eu espero, os pesadelos não conseguirão me pegar.

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