Capitulo 7

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Uma hora mais tarde, acompanho Christine e Caleb até a garagem. É a primeira vez que ando pela casa, e o tamanho da propriedade me surpreende. Além da casa, há ainda um jardim enorme, com um canil e uma piscina. Espero entrar em uma garagem lotada de carros modernos, mas sou novamente surpreendida ao ver apenas dois veículos, nenhum dos dois parecendo muito novo nem muito caro.

A pergunta de como é possível que duas pessoas tão jovens consigam arcar com uma casa daquele tamanho fica pendendo na minha boca e nos meus pensamentos, mas não a faço em voz alta. Encolho-me no banco traseiro e fico silenciosa durante o trajeto, observando a paisagem passar pela janela como num borrão.

Mais uma vez, tenho aquela sensação de reconhecer o que vejo, ao mesmo tempo em que não faço ideia de onde estou. Minha mente parece coçar, tentando recuperar a lembrança, mas ela não vem. Depois de um tempo, a tentativa começa a me dar dor de cabeça, e recosto no banco, fechando os olhos para não ver mais nada.

Quando os abro de novo, já estamos parados. Christine já saiu do carro, e Caleb está olhando para trás, com um meio sorriso preocupado. Tento parecer tranquila, mas mais uma vez tropeço nas ações simples como montar uma expressão facial. Não tenho nenhuma familiaridade com este rosto, com este corpo. Desisto na primeira tentativa.

Descemos, e olho em volta, respirando o ar frio da tarde. Deve ser outono, calculo, pelas árvores despidas de folhas e o vento gelado contrastando com o céu aberto. Estamos em uma rua comum, do tipo que tem prédios residenciais antigos e alguns comércios locais tentando resistir à chegada das grandes redes. Me pergunto se eu vivia numa rua como esta, antes, ou se sequer houve um antes além do pouco que me lembro. Me pergunto se algum dia irei ter todas as respostas.

— A estação é ali. — Christine aponta para a entrada do metrô, exatamente do outro lado da rua, uma escada que desce para o subsolo e desaparece abaixo do nível da rua — Pensei que a gente podia ir até lá dar uma olhada depois, se não acharmos nada. Ver se você se lembra de alguma coisa.

Faço que sim, mas a simples ideia de voltar àquela estação de metrô faz com que a bile suba à minha garganta. Christine não nota, mas Caleb não tira os olhos de mim. O que será que ele vê? Uma garota frágil, potencialmente louca? Alguém de quem ele gostaria de se livrar — ou alguém que gostaria de proteger? Sinto vontade de perguntar a ele, mas não tenho certeza se saberei lidar com a resposta, seja ela qual for.

— Os prédios não têm câmeras, mas as lojas, sim. — ela aponta, usando uma mão para proteger os olhos do sol e enxergar melhor — Vamos entrar e ver o que a gente pode fazer.

Atravessamos a rua, Christine à frente, eu e Caleb atrás. Ando olhando para o chão, as mãos nos bolsos do casaco, concentrada em andar sem tropeçar. Concentrada em não me deixar dominar pelas memórias. Concentrada em não olhar para ele.

A loja imediatamente à frente da estação é uma farmácia de bairro. Uma placa de papel na porta indica que o horário de funcionamento é de segunda a sexta, das 9h às 20h, e aos sábados, das 10h às 18h. Christine empurra a porta e entra, caminhando decidida até o balcão, enquanto paro para observar as estantes e os produtos. É tudo familiar e estranho ao mesmo tempo, como uma música cujos acordes eu reconheço, mas não consigo me lembrar de onde.

— Com licença. — ouço-a dizer para o balconista, um garoto de não mais de dezesseis anos, que olha assustado para o nosso grupo, tirando os fones dos ouvidos — Meu carro foi roubado aqui na frente essa semana. Queria saber se podíamos dar uma olhadinha nas gravações das câmeras de segurança de vocês pra tentar pegar alguma informação.

— Eu... preciso checar com o meu gerente. — ele aponta um polegar para os fundos da loja, parecendo inseguro.

— Isso é mesmo necessário? Só vai levar um minuto. — Christine pressiona, com uma voz cheia de charme que, assim como as estantes cheias de produtos farmacêuticos, é completamente novo, mas combina com ela. O ronronar de uma gata que vê uma presa fácil.

— Eu... — ele olha para trás, onde, desconfio, não há ninguém; talvez seja força do hábito, ou o medo de ser pego no flagra caso seu chefe entre pelos fundos da loja. Ele encara Christine mais uma vez, e então faz sua escolha — Tudo bem. Mas anda logo.

Ela sorri enquanto o garoto abre a tela com as imagens das câmeras de segurança. Posso ver a mim mesma de costas para a câmera, apoiada no balcão. Ele vai até o arquivo de imagens gravadas.

— Quando foi? — pergunta.

— Há três dias. Mais ou menos umas... — ela se vira para o irmão.

— Umas onze horas da noite, talvez um pouco mais cedo. — Caleb responde, dando de ombros. Ele me olha de soslaio, mas sabe que não há por que confirmar o horário. Mesmo que eu soubesse quanto tempo havia passado desacordada, não tinha a menor noção das horas quando ele me encontrou. Por mais que isso seja sobre mim, sou inútil.

— Toca a partir das dez. — Christine resolve, então, e o garoto atende.

Vemos uma sequência longa de pessoas passando, carros na rua. Christine toma o mouse e acelera o vídeo, o cursor parado sobre o pause, à espera de qualquer sinal. Não vejo nada, não noto nada de diferente. Tudo é um borrão. Mas então, Caleb grita:

— Para! Aí!

Christine congela a imagem, talvez alguns segundos mais tarde. Ela aumenta o quadro até que tome a tela inteira, mas não vejo nada lá. Só a rua, e a entrada da estação de metrô.

— Volta um pouco. — Caleb instrui, encarando a tela atentamente. A irmã obedece —Aí, aí.

Ela pausa, e então põe o vídeo em velocidade normal. Só então consigo ver o que ele vê.

Entrando na estação de metrô, passando pelas câmeras de cabeça baixa e descendo as escadas o mais depressa possível, estão dois homens carregando uma garota praticamente desmaiada, que arrasta os pés atrás de si. Ela poderia estar bêbada, penso. Poderia estar voltando de uma festa. Pelas roupas, poderia até ser uma moradora de rua.

Mas eu sei que não. Porque, mesmo estando sem memória, mesmo sem saber nada sobre quem sou o que aconteceu comigo, mesmo ainda estando desconfortável na minha própria pele, eu reconheço aquela estatura, aqueles cabelos e aquele corpo.

A garota que eles estão arrastando sou eu

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