Capítulo 17

47 8 8
                                    

Não tenha medo, digo a mim mesma. Não tenha medo. Você não vai ferir ninguém, se não quiser.

Mas só por precaução, espero até estar sozinha. Caleb e Christine saíram para cuidar de seus próprios afazeres - afinal, só se pode parar a vida por causa de uma completa estranha até certo ponto - e tenho a casa só para mim. Decido seguir o conselho de Christine praticar.

Não sei exatamente como farei isso. Tenho apenas uma vaga lembrança dos testes a que fui submetida enquanto estava em cativeiro. Geralmente envolviam drogas e estímulos sensoriais. Percebo que todas as vezes em que revelei meus poderes, estava sob uma imensa pressão ou medo. Não estou tão certa de que conseguirei usar deles agora, em uma situação tão atipicamente calma.

Só saberei se tentar, contudo. Então é o que faço. Vou até a sala de estar, bem-arrumada e decorada demais para parecer habitável, e abro todas as cortinas para que a claridade do dia encha o ambiente. Posiciono-me no centro, e olho para o meu próprio corpo, sem saber exatamente como ou o que fazer. Das outras vezes, pareceu quase um chamado - algo a que recorri num momento de desespero, mais em controle de mim do que eu dele. Nunca me questionei de onde vinha, ou como acessá-lo.

Fico parada por longos minutos, inquieta. Texto abrir os braços, em movimentos bobos e desajeitados, como se esperasse que um gesto certeiro seja o truque para abrir meu corpo aos poderes. Nada funciona.

Sento no chão e respiro fundo, uma onda de ansiedade começando a se apoderar de mim. Fecho os olhos, tentando me desconectar de todo o resto. As batidas do meu coração são tão altas que parecem ameaçar partir minhas costelas. Não tenha medo, digo a mim mesma, mas a voz que ouço não é a minha - é de Christine. E basta que eu pense nela para que veja os olhos de Caleb no fundo de minha mente, me encarando e sorrindo para mim.

Caleb gosta de você, Christine me disse. Posso ouvir os ecos da sua voz se misturando aos meus próprios pensamentos, e gostaria mais do que tudo de não pensar em nada disso. Não o vejo desde ontem, e mais do que nunca, temo esse encontro; temo olhá-lo e ver ali estampado o sentimento que sua irmã parece tão certa que existe. Não sei o que farei se ela tiver razão. Sequer sei o que fazer com os meus sentimentos sobre ele.

Fecho os olhos e balanço a cabeça, como se pudesse tirar tais pensamentos dali a força. Não. Não posso ter sentimentos por Caleb. Não sou segura, não sou boa, não sou o bastante. Se soubesse o que é melhor para nós dois, sumiria sem deixar rastros. Mas a quem quero enganar? Toda vez que tento fugir, toda vez que desapareço, tentando poupá-lo de mim mesma, Caleb me encontra. É como se nossos caminhos fossem destinados a se cruzarem, como se houvesse um fio invisível ligando-me a ele. Sempre sei onde ele está, e Caleb sempre sabe onde me encontrar. E se eu for completamente honesta, não quero que esse fio se rompa.

É o suficiente. Quando reabro os olhos, a sala está escura, o preto profundo que somente eu poderia causar.

Me ponho de pé outra vez. Não sei como fiz isso. Estou ansiosa, é verdade, mas não descontrolada. Temerosa, mas não em pânico. Olho em volta, e como antes, a escuridão parece se mover para me abrigar, tomando formas e tons. Sei que não há luz por puro instinto, pois posso ver tudo à minha volta. Mas como tomar aquelas sombras de volta?

Fecho os olhos, buscando me concentrar. A imagem de Caleb não sai do fundo da minha cabeça, não importa o quanto eu tente afasta-la. Então a deixo ali, como uma lembrança querida, um olhar zeloso a me observar. Respiro fundo e, mesmo sabendo que não fará diferença, abro os braços. Tento receber as sombras como velhas amigas, algo a ser celebrado.

Voltem, sussurro para o vazio. Tenho a leve impressão de ver um facho de luz pelo canto do olho. Tento perceber meu corpo, precisar de onde aquilo vem. Parece ser de lugar nenhum e de todos os lugares ao mesmo tempo - me sinto conectada à escuridão como se por uma corrente elétrica, que percorre meu corpo e me deixa leve e energizada.

Talvez, penso, antes de pedir que volte, eu deva acostumar-me a ela.

Então espero. Sento no chão da sala, e, quando a posição me cansa, deito. Observo as sombras dançarem sobre a minha cabeça, em espirais hipnóticas que me fazem fechar os olhos e respirar fundo até cair no sono.

***

- Mayumi? Mayumi, está acordada?

Abro os olhos. A sala está clara novamente, e vejo o rosto de Caleb pairando a centímetros do meu. Por um segundo, não consigo me mover. Ele está tão perto que posso contar suas sardas, ou tocar os fios de seu cabelo, se quiser. Quando vê que estou acordada, ele sorri.

- Sabe, você pode usar o sofá, se quiser. Não precisa deitar no chão. - ele brinca, suavemente.

Não consigo sequer esboçar um sorriso. Em vez disso, me sento, e ele se afasta para me dar espaço para levantar. Me ponho de pé tão rápido que me sinto zonza, e não sei dizer se é a oxigenação no sangue ou o fato de que Caleb continua perto o bastante para que eu possa tocá-lo. Tento não pensar em como seria se eu de fato esticasse a mão em sua direção. Tento não me perguntar se ele permitiria. Estou navegando em águas perigosas demais.

- Eu não pretendia dormir. - respondo, baixando os olhos para evitar os dele - Acabei pegando no sono sem querer.

- Acontece. - ele responde. Fica um momento em silêncio, e então - Escuta, você quer... ir comer alguma coisa?

- O que? - pergunto, tão surpresa que minha voz sai de uma forma um tanto brusca.

- É só que não temos nada pronto. Teríamos que pedir comida, ou ir a algum lugar. E como você quase não sai de casa, eu pensei que... - ele hesita, baixando o rosto numa expressão um tanto derrotada - Deixa para lá.

- Não. Parece... bom. - digo, minha garganta subitamente seca me fazendo gaguejar - Christine já chegou? - acrescento, quando na verdade quero perguntar, Christine vai também?

- Não. Ela saiu com uma garota, acho que deve demorar. - ele responde, e ergue os olhos para mim novamente. Aqueles malditos e belos olhos. Não há nada que eu não seja capaz de fazer por eles - E então? Vamos?

Eu e Caleb, sozinhos, juntos. Caleb gosta de você, posso ouvir Christine dizendo. O que ela não sabe é que eu também gosto dele. Por mais que tente negar, por menos que goste de admitir, está ali. No bambear das minhas pernas e no frio na barriga, no incômodo que sinto em sua ausência e no tremor que me acomete quando ele me olha. Posso não conhecer muito do mundo, e não saber nada sobre mim mesma, mas disso... disso estou certa. Tão certa quanto se é possível estar.

- Vamos. - respondo, e minha mente martela que essa é a pior de todas as decisões. Eu o estou colocando em perigo.

Mas não há nada mais perigoso que um coração apaixonado, decido. E deste mal sinto que não posso salvá-lo. Se vou para o inferno, posso muito bem aproveitar a corrida.

Quando Caleb me estende a mão timidamente, contra todo o meu bom senso e julgamento, sorrio e a aceito.

No EscuroWhere stories live. Discover now