O relógio do hospital

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O médico, paciente como se falasse a uma criança, engana-me asseverando que permanecerei aqui duas semanas. Recebo a notícia com indiferença. Tenho a certeza de que viverei pouco, mas o pavor da morte já não existe. Olho o corpo magro estirado no colchão duro e parece-me que os ossos agudos, os músculos frouxos e reduzidos, não me pertencem.

Nenhum pudor. Alguém me estendeu uma coberta sobre a nudez. Como é grande o calor, descobri-me, embora estivessem muitas pessoas na sala. E não me envergonhei quando a enfermeira me ensaboou e raspou os pelos do ventre.

Ao deitar-me na padiola, deixei os chinelos junto da cama; ao voltar da sala de operações, não os vi.

O médico se dirige em linguagem técnica a uma mulher nova, e ela me examina friamente, como se eu fosse um pouco de substância inerte, diz que os meus sofrimentos vão ser grandes.

Por enquanto estou apenas atordoado. Aquela complicação, tinir de ferros, máscaras curvadas sobre a mesa, o cheiro dos desinfetantes, mãos enluvadas e rápidas, as minhas pernas imóveis, um traço na pele escura de iodo, nuvens de algodão, tudo me dança na cabeça. Não julguei que a incisão tivesse sido profunda. Uma reta na superfície. Considerava-me quase defunto, mas no começo da operação esta ideia foi substituída por lembranças da aula primária. Um aluno riscava figuras geométricas no quadro-negro.

Morto da barriga para baixo. O resto do corpo iria morrer também, no dia seguinte descansaria no mármore do necrotério, seria esquartejado, serrado.

Fechei os olhos, tentei sacudir a cabeça presa. Uma cara me perseguia, cara terrível que surgira pouco antes, na enfermaria dos indigentes. Eu ia na padiola, os serventes tinham parado junto a uma porta aberta — a grade alvacenta aparecera, feita de tiras de esparadrapo, e, por detrás da grade, manchas amarelas, um nariz purulento, o buraco negro de uma boca, buracos negros de órbitas vazias. Esse tabuleiro de xadrez não me deixava, era mais horrível que as visões ferozes do longo delírio.

O trabalho dos médicos iria prolongar-se, cacete, meses e meses, ou findaria vinte e quatro horas depois, no necrotério? Cortado em pedaços, uma salmoura esbranquiçada cheirando a formol, o atestado de óbito redigido à pressa, um cirurgião de mangas arregaçadas lavando as mãos, extraordinariamente distante de mim.

Agora espero os sofrimentos anunciados. Um gemido fanhoso de relógio fere-me os ouvidos e fica vibrando. Insensível, olho as pernas compridas, a dobra que entre elas se forma na coberta. Outras pancadas vagarosas tremem, abafando os cochichos que fervilham na sala. Parece-me virem juntas à primeira: a meia hora decorrida perdeu-se.

Inércia, um vácuo enorme, o prognóstico da mulher nova ameaçando-me. Sono, fadiga, desejo de ficar só. Alguém se debruça na cama, encosta a orelha ao meu coração. Furam-me o braço, uma agulha procura lentamente a veia.

Escuridão, silêncio. Depois um instrumento de música a tocar, a sombra adelgaçando-se, telhados, árvores e igrejas esboçando-se a distância. Tenho a sensação de estar descendo e subindo, balançando-me como um brinquedo na extremidade de um cordel.

A dormência prolongada pouco a pouco se extingue. Os dedos dos pés mexem-se, em seguida os pés, as pernas — e enrosco-me como um verme. Uma angústia me assalta, a convicção de que me aleijaram. Esta ideia é tão viva que, apesar de terem voltado os movimentos, afasto a coberta, para certificar-me de que não me amputaram as pernas. Estão aqui, mas ainda meio entorpecidas, e é como se não fossem minhas.

As idas e vindas, as viagens para cima e para baixo, cansam-me demais, penso que uma delas será a última, que o cordel vai quebrar-se, deixar-me eternamente parado.

Noite. A treva chega de repente, entra pelas janelas, vence a luz da lâmpada. Uma friagem doce. A chuva açoita as vidraças. Durmo uns minutos, acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio de ruídos espaçados — rolar de automóveis, um canto de bêbedo, lamentações dos outros doentes — avultam as pancadas fanhosas do relógio. Som arrastado, encatarroado e descontente, gorgolejo de sufocação. Nunca houve relógio que tocasse de semelhante maneira. Deve ser um mecanismo estragado, velho, friorento, com rodas gastas e desdentadas. Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia. O relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e a máquina decrépita vai descansar.

Insônia (1947)Where stories live. Discover now