A prisão de J. Carmo Gomes

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Na pequena casa do Meyer, à rua Castro Alves, d. Aurora Gomes, filha do major Carmo Gomes, hoje defunto, soltou o jornal desanimada, com um aperto na garganta, procurando ar, o diafragma contraído. Os intestinos remexeram-se, d. Aurora deu uns passos no corredor e dirigiu-se à sala de jantar. Aí, debelado o tumulto das tripas, normalizada a respiração, encostou os cotovelos à janela, enxergou à direita o fundo da igreja, à esquerda o telhado baixo do núcleo integralista e a ponta de um mastro onde às vezes se balançava a bandeira nacional. Era domingo. A igreja devia estar aberta àquela hora, mas a bandeira não se agitava em frente dela.

D. Aurora pensou no jornal abandonado minutos antes, uma angústia apertou-lhe novamente o coração e outras vísceras. Encaminhou-se ao banheiro, fechou-se. E a casa do Meyer, a casa que o major Gomes adquirira em longos anos pacientes e arrastados, ficou deserta, para bem dizer ficou deserta, apenas com duas criaturas: o canário e o gato. O canário molhava-se no bebedouro da gaiola, o gato cochilava em cima de uma cadeira — e as talas que os separavam permitiam entre eles uma espécie de cordialidade.

Entre d. Aurora e o irmão é que não havia cordialidade. Por isso um tinha sido comido.

Repiques de sinos, o pregão de um vendedor ambulante, a asma do gato, o banho ruidoso do canário, conversas indistintas na vizinhança, som de líquido a ferver na cozinha. Depois água a derramar-se e a porta do banheiro a abrir-se.

D. Aurora entrou na sala de jantar, enxugando as mãos nos cabelos, pisando macio, movendo os beiços pálidos. Sentou-se à mesa, friorenta, tentou aquecer-se na faixa de sol que vinha da janela. Meteu os dedos úmidos no pelo do gato, espiou a folhagem da roseira e o muro do quintal. Ergueu-se cambaleando, quis ver o que havia lá fora, recuou temerosa. A igreja era velha e firme, naturalmente, mas o edifício fronteiro começava a arruinar-se, com certeza começava a arruinar-se, e os frequentadores dele viviam por aí à toa, escondidos, como ratos em tocas.

O badalar dos sinos animou-a debilmente. Outras pessoas iam agora à missa, rezar por ela: as filhas do sargento, a professora vesga, a mulher do funcionário da polícia, o caixeiro míope, os dois estudantes de cabelos escorridos, o instrutor do tiro. Consideradas em conjunto, de longe, essas figuras lhe pareciam capazes de sacrifício e heroísmo; isoladas, surgiam mesquinhas e egoístas. O caixeiro e as moças do sargento só se ocupavam com os seus negócios. Teriam os estudantes de cabelos escorridos aquele horrível costume que lhes atribuíam? D. Aurora sacudiu a cabeça e afastou o juízo temerário. Para que estar catando defeitos no próximo? Eram todos irmãos. Irmãos. Estremeceu com uma recordação desagradável, que logo se apagou, olhou a igreja, refugiou-se ali um instante. Virou-se para o outro lado, avistou o mastro sem bandeira, as portas fechadas do núcleo integralista. A vaga sensação de segurança que tinha experimentado vendo a igreja esmoreceu.

— Ai, ai.

Suspirou, achou-se abandonada, sozinha, miúda como um rato, exposta a inimigos numerosos. As notícias do jornal voltaram-lhe ao espírito: gente oculta, casas varejadas, documentos apreendidos, fugas, uma trapalhada, santo Deus. Listas, listas que enchiam colunas. Torceu as mãos, recolheu-se precipitadamente, com a ideia de que a espionavam dos quintais vizinhos.

Acariciou o gato, consolou-se um pouco afirmando interiormente que tinha muitos amigos, uma legião de amigos. Ignorava o sentido exato de legião, mas, depois de escutar o discurso de um chefe, guardara a palavra, que parecia significar número e força. Legião de amigos. Confiava nas coisas indeterminadas. A confiança pouco a pouco minguou, a fortaleza e a quantidade reduziram-se, a legião distante se desagregou — e em lugar dela ficaram os dois rapazes de cabelos escorridos, o míope, o instrutor, as filhas do sargento, a professora vesga e a mulher do funcionário da polícia. Achou-se perto dessas pessoas e enfraqueceu: evidentemente nenhuma delas poderia ajudá-la. A suposição de que a companhia boa na véspera se tornara inconveniente andou-lhe na cabeça, localizou-se, permaneceu ali, esgaravatando-lhe os miolos.

Insônia (1947)Where stories live. Discover now