A testemunha

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Como a audiência ainda não tinha começado, Gouveia conversou um instante com o oficial de justiça, debruçou-se depois à varanda, olhou sem interesse aquele pedaço de rua quase deserto. Um conhecido passou lá embaixo, a limousine do governador virou a esquina, um relógio da vizinhança bateu dez horas. Quis chamar o conhecido, pedir uma informação, mas distraiu-se com o automóvel e com as pancadas do relógio.

— Tudo à toa, desorganizado.

Tinha recebido intimação para comparecer às dez horas. Chegara momentos antes. Apenas o oficial de justiça e um servente negro na sala suja de escarro e lixo. Porcaria, falta de ordem. Fumou um cigarro, contou os urubus que maculavam as nuvens, pensou no acontecimento desagradável em que pretendiam metê-lo. Ignorava quase tudo, certamente ia embrulhar-se.

— Ratoeira.

Voltou-se, arriscou uns passos tímidos no soalho carunchoso que o servente preto varria. Dois funcionários entraram pesados, sobraçando pastas.

— Mas que diabo tenho eu com isto? rosnou Gouveia irritado, aventurando-se a dar uma patada nas tábuas gastas e oscilantes.

Foi encostar-se novamente à varanda, amofinado. Uma indiscrição no café — e ali estava à espera da justiça, mastigando frases do depoimento cacete que ia prestar. Queria livrar-se da chateação, entrar em casa, retomar o trabalho começado na noite da encrenca. Lembrou-se com um bocejo da hora agitada. Escrevia umas coisas que prometiam gasto de papel. De repente a mulher, perturbada, abrira a porta da saleta:

— Acho que mataram o vizinho aqui da esquerda.

Interrompera um período, alheio à novidade. Como ela se repetisse, erguera-se, chegara à janela, vira ajuntamento na calçada, um carro e a cabeça do chefe de polícia, ouvira lamentações e gritos. No dia seguinte lera o crime nos jornais.

Entreteve-se com os bondes, as carroças e os letreiros dos anúncios, mas o pensamento fixou-se no livro comprado na véspera. Se soubesse que ia aguentar semelhante maçada, teria trazido o volume, estaria lendo, riscando as folhas a lápis.

— Estupidez.

Afastou o depoimento que se esboçava, quase todo baseado em noticiários, porque realmente só percebera a multidão, barulho, um carro e a frontaria do chefe de polícia. Fumou outros cigarros. Sim senhor, ali à disposição da justiça, igual a um preso. Tentou marchar com segurança no soalho antigo e bichado, que balançava como um navio. Ouviu passos na escada, parou, cumprimentou o juiz de direito, o promotor e alguns advogados. Mas não se aproximou do dr. Pinheiro, um inimigo. Sem motivo, dr. Pinheiro começara a torcer-lhe o focinho. Prejuízo pequeno, um caranguejo morto. Dr. Pinheiro era um caranguejo. Tinham ido contar-lhe mentiras, provavelmente, envenená-lo contra uma pessoa que não lhe fizera mal.

O juiz consultou o relógio, sentaram-se todos em redor da grande mesa poeirenta, uma escolta chegou com dois acusados e a audiência foi aberta. Gouveia, disposto a falar pouco, para não cair em contradições e não perder o almoço, pressentiu que o interrogatório ia estirar-se. Logo no princípio houve uma série de formalidades agourentas: os advogados folheavam autos e rabiscavam notas, o escrivão batia no teclado da máquina. Gouveia estranhava o cerimonial, remoía o depoimento e enxergava nele pontos fracos. O que vira nos jornais não combinava com as observações da mulher, havia na história incongruências e passagens obscuras. Quebrava a cabeça procurando harmonizar as duas versões; como isto não era possível, resolveu sapecar uma delas.

Doeu-lhe a consciência. E o julgamento? Sossegou. Teatro, palhaçada, tudo palhaçada. Besteira amolar-se, diria meia dúzia de palavras inúteis, o julgamento não ganharia nem perderia nada.

Insônia (1947)Where stories live. Discover now