Paulo

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Pedaços de algodão e gaze amarelos de pus enchem o balde. Abriram todas as vidraças. E no calor da sala mergulho num banho de suor. Já me vestiram diversos camisões brancos, que em poucos minutos se ensoparam. Não posso afastar os panos molhados e ardentes.

As crianças estiveram a correr no chão lavado a petróleo.

— Retirem essas crianças.

Inútil trazê-las para aqui, mostrar-lhes o corpo que se desmancha numa cama estreita de hospital. Não as distingui bem na garoa que invade a sala: são criaturas estranhas, a recordação das suas fisionomias apagadas fatiga-me.

— Retirem essas crianças barulhentas.

As paredes amarelas cobrem-se de pus, o teto cobre-se de pus. A minha carne, que apodrece, suja a gaze e o algodão, espalha-se no teto e nas paredes.

A alguns passos, uma figura de mulher se evapora. Aproxima-se, está quase visível, tem uma cara amiga, uma vida que esteve presa à minha. Mas essa criatura, dificilmente organizada, pesa demais dentro de mim, necessito esforço enorme para conservar unidas as suas partes que se querem desagregar.

As minhas pálpebras cerram-se, a mulher esmorece, transforma-se em sombra pálida. Se me fosse possível falar, pedir-lhe-ia que me deixasse.

Os médicos estiveram aqui há pouco, fizeram o curativo. Enquanto amarravam a atadura, os enfermeiros me levantavam, e eu me sentia leve, parecia-me que ia voar, flutuar como balão, esgueirar-me por uma janela, fugir do cheiro de petróleo e do calor, ganhar o espaço, fazer companhia aos urubus. As palmas dos coqueiros ficariam longe, na praia branca, invisíveis como a mulher que desapareceu na sala neblinosa. Os meus olhos não podem varar esta neblina densa.

Creio que dormi horas. O balde sumiu-se. Muitas pessoas falam, há um burburinho interminável na escuridão. Seria bom que me deixassem em paz. A conversa comprida rola na sala enorme; a sala é uma praça cheia de movimento e rumor.

A imobilidade atormenta-me, desejo gritar, mas apenas consigo gemer baixinho. Se pudesse, diria qualquer coisa à figura alvacenta, que tem agora as feições de minha mulher. Um assunto me preocupa, mas certamente ela não me entenderia se eu fosse capaz de expressar-me. Contudo necessito pedir-lhe que mande chamar o médico. A voz sai-me arrastada, provavelmente digo incongruências. Minha mulher espanta-se, grande aflição marcada nos beiços lívidos e na ruga da testa.

Aborreço-me, exijo que me levem para a enfermaria dos indigentes. Estaria lá melhor, talvez lá me compreendessem. Horríveis estas paredes. Sinto-me abandonado, lamento-me, injurio a criatura solícita que se chega à cama. Por que me olha com olhos de mal-assombrado? Não percebeu o que eu disse? Bom que me mandassem para a enfermaria dos indigentes.

A ferida tortura-me, uma ferida que muda de lugar e está em todo o lado direito. Procuro convencer minha mulher de que o lado direito se inutilizou e é conveniente suprimi-lo.

A enfermaria dos indigentes.

Que fim teria levado o médico? Ele me compreenderia, não me olharia com espanto e ruga na testa.

A minha banda direita está perdida, não há meio de salvá-la. As pastas de algodão ficam amarelas, sinto que me decomponho, que uma perna, um braço, metade da cabeça, já não me pertencem, querem largar-me. Por que não me levam outra vez para a mesa de operações? Abrir-me-iam pelo meio, dividir-me-iam em dois. Ficaria aqui a parte esquerda, a direita iria para o mármore do necrotério. Cortar-me, libertar-me deste miserável que se agarrou a mim e tenta corromper-me.

A neblina se dissipa, as paredes se aproximam, estão visíveis as folhas dos coqueiros e o telhado da penitenciária, o avental da enfermeira aparece e desaparece.

Insônia (1947)Where stories live. Discover now