Um pobre-diabo

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Estendeu a mão ao deputado governista e balbuciou algumas palavras confusas, de que ele mesmo ignorava a significação. O gesto era contrafeito: enquanto o braço avançava timidamente, o resto do corpo se retraía, parecia querer recuar para além da parede. Correu a vista pelos quadros ali pendurados, deteve-se numa paisagem verde e azul, bastante desenxabida. Teve a impressão de que, se continuasse a encolher-se, iria achatar-se como a paisagem — coqueiros verdes e céu azul. A voz era uma espécie de ronco inexpressivo.

— Homem das cavernas, monologou. Criatura paleolítica. Homem das cavernas, sem dúvida.

Mas, em vez de dizer qualquer coisa que melhorasse a sua triste situação, pensou nos trogloditas e, como se achava perturbado, confundiu-os com a multidão que fervilhava lá embaixo, na rua. Avizinhou-se da janela. As pessoas que rolavam nos automóveis apareceram-lhe armadas e ferozes, cobertas de peles cabeludas. Olhou com desgosto a mão que tinha apertado a mão do político influente. Comprida, fina, inútil.

A chaminé da fábrica elevava-se a distância. Anúncios verdes, vermelhos, acendiam-se e apagavam-se. O letreiro de um jornal reluzia em frente, num quinto andar. Àquela hora o elevador enchia-se, tipos suados, de roupas frouxas, entravam e saíam. Os ônibus e os bondes moviam-se devagar, como formigas, e a carga deles aumentava ou diminuía nos postes, uma parte esgueirava-se na sombra — linhas insignificantes dentro da noite.

— Criatura paleolítica. Mãos compridas, finas, inúteis.

Esta incoerência irritou-o. Desejou afastar-se, atravessar a porta, entrar no corredor, virar à esquerda, tocar um botão, descer, ziguezaguear à toa pela cidade, traço insignificante.

Chegou-se à mesa. Ouvia desatento a voz sonora do político, sentia nela estranho poder, achava natural que na câmara as galerias se excitassem e batessem palmas escutando-a. Notava apenas que ela o jogava para direções contrárias: a porta meio cerrada e a parede onde se penduravam os coqueiros verdes e o céu azul.

Pensou no jogo de bilhar. Massé? Era, devia ser massé. A bola avançava, mas recuava antes de alcançar a tabela ou outra bola. Jogo difícil. Massé? Tinha ouvido a palavra. Ouvido ou lido, não sabia direito. Bola de bilhar. Isto. Bola de bilhar não tem memória.

Em todo o caso o deputado governista era um bom jogador. Via-lhe a mão curta e gorda, bem tratada, muito branca, e lembrava-se dos artigos e dos livros que ela havia redigido. Imaginou-a mexendo-se no papel com segurança, compondo uma prosa gorda, curta e branca, prosa que lhe dava sempre a ideia de toicinho cru. Detestava aquilo, desprezava o autor, um pedante, homem de frases arrumadas com aparato. Lendo-o, sentia-se duplamente roubado. Em primeiro lugar perdia tempo. E como levava uma vida ruim, gastando solas sem proveito em viagens às repartições, achava injustiça a ascensão do outro. Injustiça, evidentemente. Um roubo.

A amargura e o veneno desapareciam. Apertava as mãos úmidas, tentava dominar a carne bamba, que pesava demais, queria despregar-se dos ossos. Se ao menos tivesse uma cadeira para se sentar, a atrapalhação ficaria reduzida. Recostar-se-ia, cruzaria as pernas, balançaria a cabeça aprovando, naturalmente. Pareceria um sujeito educado. Mas assim de pé não se aguentava: ora caía para um lado, ora caía para outro, escorava-se à mesa, não podia resistir ao desejo de subir nela. As nádegas encostavam-se à tábua, pouco a pouco iam ganhando terreno, firmavam-se, uma perna se levantava, balançava.

O político influente passeava sem se fatigar. Dava três passos, parava, voltava-se, dava três passos novamente, tornava a parar, e assim por diante. Máquina bem construída, nenhuma peça prejudicava a função das outras. E falava. Quando se detinha, a mão curta e gorda movia-se traçando vagamente no ar a figura de um vaso, um vaso bojudo que encerrava o discurso.

Insônia (1947)Where stories live. Discover now