Luciana

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Ouvindo rumor na porta da frente e os passos conhecidos de tio Severino, Luciana entregou a Maria Júlia as revistas e as bonecas de pano, ergueu-se estouvada, saiu do corredor, entrou na sala, parou indecisa, esperando que a chamassem. Ninguém reparou nela. Papai e mamãe, no sofá, embebiam-se na palavra lenta e fanhosa de tio Severino, homem considerável, senhor da poltrona. Luciana adivinhava a consideração: os donos da casa escutavam, moviam a cabeça e aprovavam; na cozinha, resmungando, arreliando-se, a criada preparava café. Às vezes na família repetia-se uma frase que tinha peso de lei.

— Foi tio Severino quem disse.

— Ah!

E não se acrescentava mais nada.

Luciana quis aproximar-se das pessoas grandes, mas lembrou-se do que lhe tinha acontecido na véspera. Mergulhou em longa meditação. Andara com mamãe pela cidade, percorrera diversas ruas, satisfeita. Num lugar feio e escorregadio, onde a água da chuva empoçava, resistira, acuara, exigindo que pusessem ali paralelepípedos. Agarrada por um braço, intimada a continuar o passeio, tivera um acesso de desespero, um choro convulso, e caíra no chão, sentara-se na lama, esperneando e berrando. Em casa, antes de tirar-lhe a camisa suja, mamãe lhe infligira três palmadas enérgicas. Por quê? Luciana passara o dia tentando reconciliar-se com o ser poderoso que lhe magoara as nádegas. Agora, na presença da visita, essa criatura forte não anunciava perigo.

Luciana avizinhou-se do sofá nas pontas dos pés, imitando as senhoras que usam sapatos de tacão alto. Gostava desse exercício, convidava a irmã para brincar de moça. Encolhida e pálida, Maria Júlia cambaleava — e Luciana se arranjava só: prendia cordões numa caixa vazia, que se transformava em bolsa, com um pedaço de pau armava-se de sombrinha e lá ia remedando um pássaro que se dispõe a voar, inclinada para a frente, os calcanhares apoiados em saltos enormes e imaginários. Assim aparelhada, chamava-se d. Henriqueta da Boa-Vista. Manifestara-se à irmã e à cozinheira. Como as duas não admitiam que ela pudesse crescer de repente e mudar de nome, envolvera-as num largo desprezo e começara a entender-se com as paredes: ficava horas meneando-se, fazendo mesuras, dirigindo amabilidades às amigas invisíveis de d. Henriqueta da Boa-Vista.

Tio Severino era notável: vermelho, tinha maçarocas brancas no rosto, o beiço e o queixo rapados, a testa brilhante, sobrancelhas densas e óculos redondos. Entre os dentes amarelos a voz escorria, pausada, nasal, incompreensível. Luciana percebia as palavras, mas não atinava com a significação delas: arregalava os olhos claros, via a figura engelhada aumentar, a roupa escura e os sapatos pretos incharem como pneumáticos. Rondou por ali um instante, mas fatigou-se. Avistou no cabide o guarda-chuva de tio Severino e foi examiná-lo de perto, afastar as varetas, procurar um mecanismo por baixo do tecido. Desistiu da observação, meio decepcionada, e ia esgueirar-se para o corredor quando algumas sílabas da conversa indistinta lhe avivaram a recordação de outras sílabas vagas, largadas por um moleque na rua. Acercou-se do sofá, interrompeu o discurso do velho e repetiu bem alto as palavras do moleque. Papai e mamãe estremeceram, tio Severino engoliu em seco, murmurou:

— Esta menina sabe onde o diabo dorme.

Luciana teve um deslumbramento, o coraçãozinho saltou, uma alegria doida encheu-a. Sentiu-se feliz e necessitou desabafar com alguém. Esquecendo-se de que naquele momento era d. Henriqueta da Boa-Vista, cruzou a sala em passo natural, os calcanhares tocando o chão, desembestou no corredor e exibiu-se a Maria Júlia. Espalhou as revistas e as bonecas, pôs-se a dançar em cima delas. Como a outra caísse no choro, afligiu-se: consolou-a, achou-a miúda, tão miúda que não servia para confidente. Regressou, muito leve, boiando naquela claridade que a envolvia e penetrava.

— Esta menina sabe onde o diabo dorme.

Tio Severino tinha feito uma revelação extraordinária, e Luciana devia comportar-se como pessoa que sabe onde o diabo dorme. Voltou a caminhar nas pontas dos pés, de uma parede a outra, simulando não ver o sofá e a poltrona. Estava sendo observada, notavam nela sinais esquisitos, sem dúvida.

Insônia (1947)Onde histórias criam vida. Descubra agora