Ciúmes

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No dia em que d. Zulmira soube que o marido se entendia com uma criatura do Mangue foi uma aperreação. A princípio não quis acreditar e exigiu provas, depois teve dúvidas, ficou meio convencida, levantou-se da mesa antes do café e dirigiu à informante um olhar assassino. Entrou no quarto com uma rabanada, rasgou a saia no ferrolho da porta e aplicou duas chineladas no pequeno Moacir, que, sossegado num canto, manejava bonecas:

— Toma, safadinho, molengo. Tu és fêmea para andares com bonecas? Marica.

O pequeno Moacir entalou-se, indignado, e saiu jurando vingar-se. A primeira ideia que lhe veio foi derramar querosene na roupa da cama e riscar um fósforo em cima. Refletindo, achou o projeto irrealizável, porque na casa não havia querosene, e resolveu contar ao pai que tinha visto a mãe conversar na praia com um rapaz.

Nesse ponto d. Zulmira sacudia furiosamente as gavetas, procurando papéis e cheirando panos.

— Não quebre tudo não, disse a hospedeira do outro lado da porta.

D. Zulmira considerou que os móveis eram alheios, baixou a pancada e findou a investigação com menos barulho. Não encontrando sinais comprometedores, deixou cartas e camisas misturadas sobre a mesa, encostou-se à janela e pôs-se a olhar o jardim, dando ligeiras patadas nervosas no soalho.

— Venha tomar café, gritou da sala de jantar a proprietária da pensão.

D. Zulmira resmungou baixinho uma praga bastante cabeluda. Aborrecia palavrões na linguagem escrita. Ainda na véspera, diante de amigas, condenara severamente um romance moderno cheio de obscenidades. Mas gostava de rosnar essas expressões enérgicas. Às vezes, em momentos de abandono completo, chegava a utilizá-las em voz alta — e isto lhe dava enorme prazer. A palavra indecente pronunciada para não ser ouvida trouxe-lhe ao espírito a recordação de cenas íntimas, que afastou irada, agitando a cabeça e batendo mais fortemente com o calcanhar na tábua. Tinha duas pequenas rugas verticais entre as sobrancelhas, os cantos da boca repuxados, excessivamente amarelos os pontos do rosto onde não havia tinta.

No meio da zanga, operava-se no interior de d. Zulmira uma tremenda confusão. O que mais a incomodava eram os brinquedos do pequeno Moacir. Retirou-se da janela e entrou a passear no quarto, atirando grandes pernadas em várias direções. Como numa das viagens encontrasse o caminho obstruído pelas bonecas, espalhou-as com um pontapé:

— Manca, moleirão.

Olhou a fotografia do menino e começou a distinguir no rostinho bochechudo as feições do pai. Lembrou-se do noivado chocho, do enjoo na gestação, do parto difícil. Sentia-se gravemente ofendida pelos dois. Soltou um longo suspiro, voltou a fotografia para a parede e cravou os olhos no chão. As bonecas tinham-se escondido debaixo dos móveis, o que havia no soalho eram algumas camisas, lenços e cartas. O coração de d. Zulmira engrossou muito, cheio de veneno, e o bicho que o mordia tinha a princípio a figura do pequeno Moacir, tornou-se depois um ente hermafrodita, com pedaços de homem e pedaços de mulher do Mangue.

— Ai, ai.

Novo suspiro elevou o seio volumoso de d. Zulmira, obrigou-a a desapertar o vestido.

— Ai, ai.

O ser hermafrodita evaporou-se, e ela enxergou o sujeito barbudo e chato com quem vivia. Como se julgava muito superior ao companheiro, sentia-se humilhada ao descobrir que semelhante indivíduo a enganava. Não sabia direito por que era superior, mas era, sempre se imaginara superior, sem análises.

Pensou em namorados antigos, em alguns recentes. Se um deles fizesse aquilo, bem, estava certo. Mas o homem barbudo sempre fora inofensivo. Ela se divertia em experimentá-lo praticando leviandades. O marido não se alterava: comia com o rosto em cima do prato, andava de cabeça baixa, tranquilo, sem opinião.

Insônia (1947)Where stories live. Discover now