Dois dedos

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Dr. Silveira atravessou a antecâmara e aproximou-se do reposteiro. O contínuo velho barrou-lhe a passagem, quis exigir cartão de visita, mas vendo-lhe o rosto, a mão que se agitava como afastando uma coisa importuna, curvou-se, entreabriu o pano verde e foi encolher-se num vão de janela:

— Deve ser troço na política.

Dr. Silveira entrou no gabinete do governador. Entrou de coração leve, como se pisasse em terreno conhecido, os braços alongados para um abraço. Um abraço, perfeitamente. O homem que ali estava fora vizinho dele, colega de escola primária, colega de liceu, amigo íntimo, unha com carne. A mulher de dr. Silveira tinha dito:

— Visita sem jeito. Esqueça-se disso. Política!

E ele respondera:

— Que política! Eu me importo com política? É que fomos criados juntos. Assim, olhe.

Juntava o médio e o indicador da mão direita, de modo que se conservassem em posição horizontal, movia-os ligeiramente. Nenhum dos dedos ultrapassava o outro.

— Assim.

Estirava o indicador e contraía o médio, para que ficassem do mesmo tamanho. Infelizmente não tinham ficado. Um deles estudara Direito, entrara em combinações, trepara, saíra governador; o outro, mais curto, era médico de arrabalde, com diminuta clientela e sem automóvel. Por isso a mulher dissera:

— Não gosto de misturas. Visita sem jeito. Cada macaco no seu galho.

— Que galho! retrucara dr. Silveira. Éramos dois irmãos. Estudávamos juntos, vivíamos juntos. Vou. Se não fosse, o homem havia de reparar. Um irmão.

Escovara e vestira a roupa menos batida. Isso de roupa era tolice, mas afinal fazia uma eternidade que não via o amigo, o irmão, unha com carne.

— Assim.

Tomara um automóvel. Chegara ao palácio, onde nunca havia posto os pés, atravessara o hall, hesitando. O gabinete do governador seria à direita ou à esquerda? Perguntas cochichadas a funcionários carrancudos.

O amigo, o irmão, havia sido reprovado em química vinte anos antes, enganchara-se no átomo. Agora dominava aquilo tudo, e o átomo era inútil.

Informado por um guarda, dr. Silveira transpusera uns metros de corredor sombrio, entrara na antecâmara, chegara-se ao reposteiro, afastara o contínuo velho, que se encolhera num vão de janela:

— Deve ser troço.

Bem. Dr. Silveira estava no gabinete, livre de incertezas e das informações daquelas caras antipáticas. Avançou dois passos, os braços estirados como para abraçar alguém, sem ver nada. Infelizmente escorregou no soalho muito lustroso e parou. Veio-lhe então a ideia de que escorregar era inconveniente. Não devia escorregar. Pisando no paralelepípedo, caminhava direito. Mas ali, na madeira envernizada, a segurança desaparecia. Cócegas nas solas dos pés, suor nas solas dos pés. Um escorrego — confissão de inferioridade.

Aprumou-se, estendeu os olhos em redor, e foi aí que notou o lugar onde se achava. No salão, fechado, o que lhe provocou a atenção foi a mesa de tamanho absurdo, entre cadeiras de altura absurda. Teve a impressão extravagante de que a mesa era maior que o salão. Nunca havia entrado em gabinetes, mas acostumara-se a julgá-los pequenos. E o salão era enorme, cercado de vidros por um lado, de livros pelo outro. Aquilo tinha aparência de biblioteca pública.

De relance percebeu uma fileira de volumes taludos, bem encadernados, e entristeceu. Devia ser um dicionário monstruoso, uma enciclopédia, qualquer coisa assim, para contos de réis. Engano: era simplesmente uma coleção do Diário Oficial. Mas isto produzia efeito extraordinário, e dr. Silveira imaginou ali grande soma de ciência. Deu um passo tímido no soalho, temendo escorregar de novo. Nenhuma segurança. Os braços, que se arqueavam para um abraço, caíram desajeitados ao longo do corpo meio corcunda.

Insônia (1947)Where stories live. Discover now