Capítulo 6

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Eram oito horas da noite. Em um dia normal, Vinicius chegaria do trabalho nesse horário e, exausto, iria para a cama. Mas aquele não era um dia como todos os outros. Tendo sido demitido de seu emprego recentemente, passava a maior parte de sua existência resmungando e reclamando, preocupado em como alimentaria sua família. Pensava o dia todo em Adriano e em como aparentemente fora manipulado ao aceitar "encomendar" Vanessa sem antes pedir seu pagamento. Em todos seus outros trabalhos, ele exigia receber adiantado, mas não fez isso dessa vez. Entretanto, sua preocupação não era maior do que a sua raiva. Ele queria um emprego normal em que recebesse todos os seus direitos e deveres. Como levaria comida para a mesa senão se submetendo a situações como essa?

Suspirou. Ele era realmente azarado. Pensou em como seus problemas começaram ainda antes dele nascer. Seus pais, simples trabalhadores honestos, cometeram um erro muito grande ao tê-lo como filho. Como todos sabiam, ter mais de uma criança era simplesmente proibido desde 2063, já que graças à superpopulação, não havia recursos suficientes para sustentar a todos e, portanto, a melhor maneira de impedir que a população crescesse demais era controlando a quantidade de vezes que uma mulher iria parir. Para isso, o governo oferecia gratuitamente os mais diversos tipos de contraceptivos que impedissem qualquer gravidez indesejada. Apesar disso, seus pais tiveram dois filhos, atitude totalmente proibida por lei.

Quando o governo descobria que uma família tinha duas crianças, a atitude era simples: matar uma das duas. Cabe aos pais decidir qual dos filhos sacrificar. Se eles decidissem não matar nenhuma, o governo as tomaria à força e as assassinaria de qualquer forma. Além disso, teriam que pagar uma multa e, se não tivessem dinheiro, teriam que realizar dois anos de trabalho forçado.

Quando Vinicius nasceu, seus pais não pensaram duas vezes. Iriam sacrificar o bebê recém-nascido sobre o qual não tinham nenhum vínculo afetivo ainda. Entretanto, sua irmã de 11 anos, que se chamava Ana, decidiu que queria que a criança vivesse. Os pais, que a amavam muito, tentaram argumentar que isso não deveria ser feito, pois não havia razão para deixar viver um bebê que ainda não tinha vida nem personalidade própria, em detrimento de uma pré adolescente com todo um futuro pela frente. Mas nada a fazia mudar de ideia. Ela estava decidida que queria dar uma chance a seu irmão. E assim foi feito. Dias depois Ana foi morta por uma injeção letal que garantia morte instantânea. Um dos privilégios que o governo dava aos criminosos era não precisar sentir dor, pois, segundo as autoridades, não havia razão para fazer alguém sofrer mais do que o necessário.

Além disso, como não tinham dinheiro, um dos pais precisava realizar dois anos de trabalho forçado. Foi escolhido que a mãe de Vinicius faria esse trabalho, pois, afinal de contas, foi ela que engravidou. Seu trabalho era limpar os elevadores que levavam as pessoas de um nível para o outro. Sem conhecimento de engenharia, tudo que ela podia fazer era passar os panos nas engrenagens; o perfeito trabalho para pessoas sem qualificação. Era um trabalho enfadonho e repetitivo, mas necessário para pagar pelo erro que cometera.

Meses se passaram, e ela seguia todos os dias para a mesma rotina. Não recebia nada, é claro, mas aceitava aquilo com gosto porque reconhecia que cometera o erro de engravidar duas vezes. Um dia, porém, seu braço ficou preso em uma das engrenagens que limpava. Gritou por ajuda, e alguns minutos depois recebeu socorro de outros desafortunados que nada sabiam de medicina. Tentaram animar seu braço, mas não havia jeito. Ele teria de ser amputado. E assim foi feito. No dia seguinte ela teria que realizar tal procedimento em uma clínica clandestina, é claro, pois não podia pagar por bons médicos.

Apesar disso, ela precisava continuar trabalhando. Não havia para onde fugir. Tinha que cumprir, de algum modo, a sua missão. Assim, mesmo doente, cumpriu o tempo que faltava de trabalho forçado. Mas o mal já estava feito; não tendo tido a oportunidade de descansar quando se machucou, sua saúde só piorou. Dessa forma, graças às sequelas de tal acidente, Vinicius vira a mãe doente por toda a sua vida.

Como era de se esperar, Vinicius cresceu sendo odiado pelo pai. Ele sempre jogava na sua cara que, graças a ele, perdeu a filha que tanto amava e parte da mulher a quem queria. O garoto soube desde cedo que ele nunca sequer deveria ter nascido. Por causa disso, tentava sempre não arrumar problemas e compensar o que causara de mal. Fazia isso trabalhando muito. Pensava que, com dinheiro, seu pai lhe perdoaria pelo que fez com a mãe e com a irmã (que nem sequer pôde conhecer).

Depois de refletir um pouco sobre seu passado, Vinicius pensou agora no presente. Precisava pegar o dinheiro que tinha conseguido ao enviar a mensagem à Vanessa. Ele ainda não sabia quanto iria receber pelo serviço, mas imaginava que a quantia seria baixa, considerando o fato de que aquele emprego não era nada confiável.

Tudo que ele precisava era encontrar Adriano, seu parceiro de negócios. Como fazer isso? Ele não sabia. Matutou um pouco e pensou: vou ao mesmo local onde nos encontramos pela primeira vez e vou esperar até que ele apareça.

Dito e feito. Pegou suas coisas e saiu de casa. Seus pais não se importaram, é claro, porque nunca davam atenção ao filho. Assim, dirigiu-se até o sofá velho com iluminação do século XIX e surpreendeu-se ao deparar-se com Adriano lá fora.

– Meu amigo, faz quanto tempo que não nos vemos – disse Adriano calorosamente abrindo um sorriso – Como você está?

– Cadê meu dinheiro? – disse Vinicius, enfático – Você não vai me dizer que eu trabalhei de graça?

– Calma. Não há razão para preocupar-se – falou Adriano– Você terá o dinheiro logo. Mas antes precisamos conversar um pouco mais sobre o seu trabalho. Preciso te fazer algumas perguntas.

– Faça – respondeu grosseiramente Vinicius.

– Você realizou os procedimentos como pedi? – perguntou.

– Sim, senhor. – assentiu - Eu ainda ofereci à Vanessa o livro Marte para Iniciantes, que estava na biblioteca.

– Muito bem, garoto. Aquele livro era realmente um teste do Comandante. Você soube honrar seu papel como mensageiro! A Organização terá orgulho de você. Te darei seu pagamento agora mesmo – dizendo isso, tirou muitas notas amassadas e entregou para ele. Eram três de 100, dez de cinquenta, cinco de 20, nove de 10, 8 de 1, sendo o restante composto de moedas. Tinha uma quantia total de 1000 dólares. – isso provavelmente é muito mais dinheiro do que você já sonhou em ver. Caso você não saiba, o país dessas notas são os antigos Estados Unidos. Quando o governo global foi instituído, foi necessário escolher uma única moeda para representar todo o nosso mundo. A decisão unânime foi que os EUA eram a nação mais importante, considerando toda sua história, poder militar, cultura, língua, economia, entre outros. Eu tenho minhas dúvidas quanto a essa decisão, meu caro.

Vinicius pensou em como "governo global" era uma expressão interessante, considerando que ninguém conhecia nada além da Torre onde moravam. Poucos sabiam sobre as outras torres onde viviam os outros sobreviventes da Grande Guerra da Década de 2050.

– Muito obrigado, senhor. Estou muito feliz. Não imaginei que receberia o pagamento – disse dando um abraço em Adriano.

– Espere. Ainda não terminamos – disse abruptamente Adriano – a sua próxima missão será presentear sua mãe com a passagem para Marte.

Uma passagem para MarteWhere stories live. Discover now