66. Por que você prefere escrever sobre os países dos outros?

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#praTodosVerem | Descrição da imagem: vê-se um grupo de pessoas ao redor de uma bandeira do Brasil

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#praTodosVerem | Descrição da imagem: vê-se um grupo de pessoas ao redor de uma bandeira do Brasil. Duas delas seguram o símbolo nacional enquanto as chamas consomem o tecido.

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Abra o Wattpad e tenha certeza: a quantidade de livros que se passam em países estrangeiros é a maioria. O pantanal mato-grossense, as ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro, as belezas de Minas Gerais, o interior do sertão cearense, o Círio de Nazaré, as belezas da Chapada das Mesas, os encantos do Pelourinho, as serras gaúchas, a força amazônica? Esqueça! Esses são apenas dez por cento das obras. O Wattpad Brasil, reitero, está cheio de escritores que enaltecem os países dos outros e, na tentativa de escreverem sobre esses lugares com que tanto sonham, moldam obras de pouca ambientação, com personagens de nomes estrangeiros e com descrições genéricas retiradas de filmes e de fotos da internet.

E, sim, temos de falar sobre isso de novo e de novo e de novo.

Note que eu não falo que as narrativas são ruins. Não tem a ver com qualidade. Tem a ver, sim, com a falta de substância, falta de ambientação; a falta de elementos daquele lugar que só podem ser traduzidos em palavras por alguém que mora ou que ao menos já pisou ali. Se tua história se passa em uma Inglaterra que você só vê por filmes e pela internet, esqueça: você não vai traduzir os pormenores da cidade. Você só está repetindo em teu texto uma visão midiática que nos é passada. Você está sendo massa de manobra.

"Ah, mas e quando os autores desses países escrevem sobre tempos antigos dos lugares onde moram? Eles não estiveram no século treze!", argumentam. Sim, concordo. Não inventamos e não vamos inventar a máquina do tempo. Contudo, esses autores estão inseridos no ambiente dessas histórias antigas. Mais do que qualquer outro, eles têm em seus genes o percurso da história dos seus países e mais: eles têm em mãos os resquícios do passado. Acesso a sítios arqueológicos, museus, registros nacionais, registros orais feitos por pessoas mais velhas, professores, Universidades locais, bibliotecas, praças, ruas, monumentos, lendas... Eles podem vivenciar parte da antiguidade dos seus povos, assim como nós podemos fazer o mesmo.

Sabe o que torna "Harry Potter" tão rico? O fato de a autora ter trazido pormenores de lugares onde ela esteve. Ela CONHECE esses lugares e adaptou cada um deles para o universo mágico dela. Ela conhece o clima, conhece as praças, conhece os "temperos" das pessoas. Ela escreve sobre paisagens britânicas porque ela está inserida naquele contexto. E não só da Inglaterra. Muitos dos elementos do universo da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts são fundamentados em viagens que a escritora fez, lugares que visitou, transportes que utilizou, florestas que observou.

Observar. Pisar. Sentir. Respirar. Participar. Vivenciar. Fotografias e vídeos são recortes da realidade trazidos pelo olhar de outras pessoas que, infelizmente, não conseguem substituir nenhum dos verbos citados.

Por isso, quando são feitos com base em pontos genéricos, os livros ficam empobrecidos em suas narrativas. Personagens ótimos, tramas instigantes, beats dos capítulos bem defendidos, mapa das fábulas dos personagens bem ajustados. Mas pecam nos detalhes. E não: ambientação não é só descrever lugares em minúcias. Ambientação, acima de tudo, é sentir a essência daquele lugar, as pessoas, o clima, os sabores, a poesia que só alguém que vivencia ou vivenciou aquilo consegue sentir. Isso não é transmitido por uma tela de celular.

É por isso que os "livros escritos por brasileiros que se passam em outros países" NÃO são ruins, mas são FALHOS. Falta a eles essa imersão sensorial.

Se você anda aí reclamando do governo (com razão), mas tuas narrativas se passam bem longe do Brasil, há algo de hipocrisia aí, não? No resumo da ópera, você está gritando e lutando pela melhoria de um país que, pelo visto, você não valoriza muito.

Se tem uma coisa que me orgulho é de dizer que todos os meus livros, mesmo "O Bailarino de Arcéh", uma obra de fantasia, todos se passam aqui no Maranhão. Por quê? Porque é o único lugar que eu conheço, que eu pisei e piso, que eu sei dos problemas; é o único lugar em que olho para as pessoas e eu me vejo refletido nos olhares delas. Eu faço isso para engrandecer São Luís, o Maranhão, o Brasil. Mas, acima disso, para me valorizar. Valorizar o que eu vivencio.

Há histórias aqui. Há histórias aí, na tua cidade, na tua casa. Mergulhe nessas histórias, pesquise, converse com os mais velhos, exume a história dos esquecidos. Escrever é um ato político. E, sejamos sensatos, o cenário atual precisa de um amor pelo Brasil que consiga superar o fanatismo e as ideologias esdrúxulas.

Como ter amor pelo o que não se conhece? Pelo o que se ignora? Como se preocupar com árvores queimadas e animais mortos em incêndios florestais quando aqui, no nosso círculo de discussão, a maioria não traduz essa realidade? Como lutar contra o racismo, conta a LGBTfobia, contra o machismo no Brasil, se você só fala sobre preconceitos baseados em realidades alheias?

Meses atrás, em uma discussão no grupo Wattpad Brasil no Facebook, um escritor disse que "o importante é falar sobre preconceito, independente do país em que se passe". Sim, eu não discordo. Mas essa é aquele tipo de resposta genérica que usa de uma verdade para mascarar a realidade.

A realidade dos outros países não traduz a realidade do Brasil. Cada povo tem sua peculiaridade e de nada me adianta, por exemplo, falar sobre preconceito racial nos Estados Unidos se aqui na minha vizinhança, no meu estado, esse preconceito é velado, sorrateiro, institucionalizado e molda detalhes que só nós, brasileiros, conhecemos. Eu conheço um escritor que adora falar sobre os negros norte-americanos, fez textão indignado quando policiais assassinaram George Floyd nos Estados Unidos e adora militar sobre o assunto. No entanto, em todos os anos que o acompanho, eu nunca o vi escrever uma vírgula sobre os preconceitos raciais brasileiros. Favelas, diferenças salariais, policiais que prendem cantores apenas pela cor da pele, disparidades de abordagem, elevadores separados? Nenhuma vírgula.

Há uma disparidade de abordagens, não há?

Não caia nos discursos de "não tem nada para me orgulhar no Brasil". Se você se acorrenta a isso e não vê o que pode escrever sobre o nosso país, sinceramente, há algo falho. Todas as histórias podem se passar aqui. Repito: todas. Todas as premissas podem ser adaptadas para cá. Eu sei que muitos vão torcer a boca, fazer piadinha, dar mil e uma desculpas. Mas quanto dessa ojeriza à nossa própria história não é fruto de preconceitos que você nem percebe que tem? Preconceitos seculares e mal resolvidos? Quantas vezes você já não ouviu piadas comparando o nosso folclore com os mitos celtas ou com a mitologia grega? Muitas de nossas lendas e mitos têm bases indígenas e africanas. No momento em que as rejeitamos, será que não há uma rejeição das próprias origens?

Quer um grandioso exemplo sobre isso? Por que nossas escolas abordam a história da Europa, mas ignoram a história da África? E a história dos povos indígenas? Onde está? Por que ao invés de um medíocre "dia do índio" nós não estudamos de fato a cultura dessas populações?

Fica a reflexão: quando falamos sobre ideologias e formação de sociedades, nada é gratuito. Pense nisso.

Por mais que não pareça, aqui mesmo no Wattpad, com nossa escrita, nossas narrativas, nós temos a oportunidade de juntar os cacos dos espelhos que quebramos para começarmos a refletir nossa própria terra.

É uma proposta de desafio.

Desafie-se a fazer diferente.   

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WATTPAD: guia de sobrevivênciaWhere stories live. Discover now