Cometa Cabello

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Notas:

Por essa vocês não esperavam.

Ah, e eu tenho feito posts (no @descansandoamor) com as citações da estória, me falem as preferidas de vocês como sugestão.

Capítulo passado eu fiz "Dia desses eu vou ter que aprender a meditar sem respirar você".

Beijão.

[A foto é do Robert Wiedemann].

“Lauren?”

O duplo farol atacamita se virou para lhe ver.

Tinha uma expressão tão suave.

Seu olhar dizia, ‘Sim, meu bem?’.

Lembrava mesmo a relação da luz com a vigília do mar.

Íntima, protetora, estável.

As íris sussurravam ‘Como você está linda hoje’.

Quando Lauren lhe admirava, ela se sentia num pedestal do Louvre.

E não diante de um turista empenhado em visualizar o máximo do acervo com o mínimo de esforço.

Não...

Era o olhar de uma pós-doutora que aguardara a vida inteira pela chance de visitar a França e estar próxima daquela peça em específico.

Parte dela ficava com medo de ser idealizada.

Falavam que não era bom para relacionamentos.

Mas não sentia como se Lauren houvesse se encantado com uma ideia abstrata de uma versão sua que fabricara.

Sentia como se ela a enxergasse.

“Ei, me leva junto”

“Hmm?”

“Pra esse mundo Camila que você foi. No que estava pensando?”

“Estava pensando que você me olha como se eu pertencesse ao Louvre”

Lauren não hesitou em entrar na metáfora:

“Louvre? Louvre não. Muito senso comum. Acho que te imaginaria mais como alguma galeria que demanda um pouco mais de empenho para ser reconhecida. Dessas que os professores de História da Arte ficam com os olhinhos brilhando falando sobre, mas que nenhum aluno visitou ainda. Não muito popular, mas muito querida”

Era mesmo como o farol.

Realmente não a idealizava...

Só a valorizava muito.

Focalizava, lhe colocando na melhor luz possível.

Criando ênfases indulgentes no mar turbulento da sua personalidade.

Será que era isso o que a relação delas sempre seria?

Uma conexão imutável mas totalmente estanque.

De admiração mútua mas concretude nula.

“Camila? Estamos perdendo as crianças na caça ao tesouro”

E Lauren era tão boa negociadora.

Sempre que sentia que estava lhe perdendo para sua lógica, lhe trazia de volta ao simples.

Conhecer sua tática não fazia o instrumento menos eficiente.

“Caça ao tesouro?”

“É, olha. Aquele professor, não sei, talvez de educação física? Está deixando as crianças loucamente felizes. Parece um comercial de margarina”

Procurou a movimentação no parque.

Identificou silhuetas jovens tentando alucinadamente abrir caixas colocadas em caixas, enquanto outras corriam para pegar um envelope enorme pendurado numa árvore em altura acessível.

Um homem de perfil atlético observava empolgado tudo, segurando um apito e uma bandeira.

“Então ele decidiu ficar”

Lauren lhe encarou sem entender nada.

Finalmente.

Era bom de vez em quando conferir que ela não lia mentes.

Ajudou:

“Conheço ele”

“O professor?”

“Aham. Nos esbarramos quando eu estava na Torre de Belém. Ele comentou que não sabia se ia se mudar pra Inglaterra ou se voltava pra Itália”

“As crianças daqui estão felizes que ele ficou. Se quiser olho suas coisas enquanto você vai lá dar um oi”

Ignorou a proposta, dizendo:

“Olha aquela ali que parou de brincar, hipnotizada com a aula de zumba alheia”

“Eu nunca conseguiria morar numa cidade pequena”

Questionou o motivo com o olhar.

“Olha esse parque. É dia de semana, um horário qualquer. E tem um mundo de atividades acontecendo. Se você acordar com vontade de fazer qualquer coisa, encontra”

“Mas as cidades pequenas têm seu charme também. Isso de ir pro supermercado e encontrar despretensiosamente um amigo querido. Aquela sensação de que a cidade inteira é uma extensão do seu quintal. O aconchego sabe”

“Você acabou de encontrar um amigo no meio de Londres”

“Coincidência estranha que não vai se repetir por muito tempo”

Lauren ergueu as sobrancelhas em ceticismo teimoso.

“Eu conheço a professora de Zumba”

Riu.

Cheia de argumentos aquela Lauren Jauregui.

“Você sempre age como se estivesse num tribunal?”

Ela não titubeou:

“Só quando estou me divertindo”

“Espero que isso não mude com o fato de que ela está vindo para cá”

“Quem?”

“Zumba”

Estava toda suada na sua glória atlética, mas de alguma forma parecia plenamente composta.

Seu coque carregava um comprimento considerável de cabelo, daqueles que notoriamente se soltariam numa esbelta juba em momentos mais descontraídos.

E poucas expressões faciais seriam mais favoráveis a ela do que a que apresentava agora: ares de quem tivera uma agradável surpresa e solos de quem tinha algo em mente.

O sorriso discreto matinha a simetria do seu rosto e a curiosidade conferia uma graça extra ao seu olhar.

“Hey Lauren. Hey Camila”

Camila?

Lauren se levantou para cumprimentá-la.

“Simone, que bom te ver. Sua aula está lotada”

Era um tom doce.

Nada do açúcar que reservava pra ela, mas era acolhedor.

Isso era bom.

Desconfiava de pessoas que tratavam mal casos antigos, se não foram abusivos ou algo do tipo.

Uma cumplicidade passada merecia respeito.

“Camila, essa é a Simone, ela é uma dançarina impecável e uma cozinheira terrível, vocês devem ter isso em comum”

Simone achou graça.

“Você também não sabe cozinhar para além do peixe com batata Camila?”

Na verdade era uma cozinheira excelente.

Por que as pessoas achavam que gente distraída não sabia cozinhar?

Ela era boa em coisas práticas quando se concentrava nelas.

Oras.

Era restauradora.

Mas não quis ser desagradável, adotou uma postura cúmplice:

“Lauren nunca comeu nada que eu fiz, não sei o motivo da implicância”

“Não que isso fosse prova de algo também, essa aí come qualquer coisa”

Isso era verdade, nunca vira alguém apreciando comida de avião daquela maneira.

Sorriu como se não estivesse imaginando as outras duas dividindo uma refeição numa noite de sexta.

Simone cutucou Lauren outra vez, em tom leve:

“Nem foi me cumprimentar. Te vi desde cedo, mas como estava em aula achei que quem ia fazer o percurso deveria ser você”

“É culpa da Camila”

Oi?

“Ela tem me visto tão pouco que quando nos encontramos fico mesquinha com os meus segundos”

Foi num cômodo bem discreto da sua mente para sentir o prazer de ouvir aquela declaração pública.

Um em que não seria julgada pelos outros neurônios.

“Está perdoada. Cometa Cabello né. Não tem jeito”

Dessa vez teve que perguntar:

“Cometa Cabello?”

Simone olhou Lauren como quem delega a resposta, então se juntou a ela na plateia.

A advogada contornou:

“É bem mais informação do que você gostaria de receber Camila”

“Agora quero saber”

“É que... você sabe. Não ando muito... empolgada com a minha solterice... como antigamente. Tive que avisar umas pessoas”

“O que você avisou?”

“Você não quer saber”

“Fala”

“Que eu não tinha previsto o cometa Cabello e por isso a mudança brusca”

...

Desviou o olhar pra algo vago no parque, atônita.

“Pra ser sincera, eu vim mais ver Camila que você. Estava curiosa”

“Simone, a gente não está junto junto sabe. Você está deixando ela sem graça. Na verdade só nos esbarramos na rua”

Junto junto...

Em defesa dela, parecia desconcertada por ter sido inconveniente.

Mas não deixou o sentimento lhe impedir de continuar.

“Você avisou todos os seus rolos sobre alguém que nem saiu ainda?”

Lauren continuava perfeitamente plena, explicando a logística da metáfora:

“Por isso é um cometa. A coisa toda de olhar de longe, sabe”

Como se estivesse explicando um artigo do Código de Processo Penal.

Normal demais.

Estava sentindo a ansiedade lhe preencher o corpo.

Não estava pronta para falar delas assim.

O reconhecimento externo da situação estranha que passavam lhe trazia desconfortos nítidos.

Tateou o banco em busca da sacola e da sua bolsa.

Eu tenho que ir. Está tarde”

Por crueldade casual da vida, a artista de rua acompanhou a troca de humor do ambiente.

Começou a tocar “Omg Did She Call Him Baby?”...

A Beth McCarthy iria lhe desculpar.

Mas de romântica aquela música não tinha nada.

De amores impossíveis ela queria distância.


Modulação PolicromáticaWhere stories live. Discover now