Noturno em preto e dourado

3.7K 360 247
                                    

Em algum momento da vida, todo mundo se sente como um quadro, sendo julgado de cabeça para baixo, criticado por quem não consegue enxergá-lo.

Essa é a fascinante e revoltante história do “Noturno, em preto e dourado – O foguete caindo” do James Abbott McNeill Whistler.

Um dos críticos de arte mais célebres da época, John Ruskin, o julgou como tão mal feito que chegava a ser ofensivo.

Em suas palavras, “Noturno, em preto e dourado” era como um balde de tinta jogado na cara do público.

A crítica brutal fez com que muitos se envergonhassem de possuir um James McNeill Whistler, e praticamente todos hesitarem em comprar uma obra dele.

A despeito da rejeição, a técnica do quadro de simplória não tinha nada.

A aplicação da tinta, de inspiração asiática, demandara estudo intenso e execução primorosa.

A decisão do pintor, de representar vagamente os fogos de artifício preenchendo o céu de um jardim londrino, honrava  sua convicção de que era mais importante expressar do que copiar.

O quadro revelava a essência do lugar, não a sua aparência.

O próprio nome era uma constatação da filosofia do pintor: noturno.

Uma referência às composições musicais inspiradas pela noite.

O quadro era uma harmonia executada com maestria.

E mesmo assim John Ruskin o declarou detestável.

James McNeill Whistler, indignado, decidiu levar o caso a julgamento.

O embate, como a maioria dos embates, foi pouco justo.

Ruskin era rico e extremamente respeitado pela academia de arte e pelo público.

E o quadro...

Foi exposto ao júri de cabeça para baixo.

Resultado, Whistler ganhou ¼ de centavo pelo processo.

E foi condenado em metade das suas custas judiciais.

A parte ainda mais inacreditável da história toda?

Acredita-se hoje que John Ruskin portava uma doença, uma arteriopatia cerebral autossômica dominante com infartos subcorticais e leucoencefalopatia.

CADASIL.

Essa condição, muito possivelmente, alterava sua percepção da tela.

Então...

Da próxima vez que alguém se sentir como um quadro, sendo julgado de cabeça para baixo, criticado por quem não consegue enxergá-lo, deveria se lembrar de que “Noturno, em preto e dourado” é hoje mundialmente reconhecido como uma das maiores obras de arte já feitas.

Que agonia ser mal interpretado.

A única cura?

Confiar acima de tudo na sua própria interpretação de si.

E existir sem alterações até receber o valor devido.

Bem.

Quem enfrentava atualmente aquela missão era sua irmã.

Não parecia nada empolgada com a perspectiva de ser julgada, de cabeça para baixo, por quem não conseguia enxergá-la.

Sofi encarava a parede com uma concentração sherlockiana.

Precisava se preparar para lidar com o que seja que aquela mente estava invocando.

Quando a menina entrava naquele modo reflexivo, lhe fazia se sentir como Watson prestes a ser devorado por uma intelectualidade desleal.

Modulação PolicromáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora