Resgate

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Não consegui dormir naquela noite por conta das dores e do desconforto que as cordas causavam seja arranhando minha pele ou limitando meus movimentos. Depois do que me pareceu uma eternidade, os raios do sol começaram a surgir tímidos pelas frestas da janela, parecia estar nublado e isso tornava o dia ainda mais melancólico. Me sentei e alcancei a garrafa de água, o liquido estava quente como das outras vezes e novamente não me importei, tomei o suficiente para matar a sede. Novamente barulho na porta e o homem encapuzado surgiu.
 
– Eu deveria te deixar sem comer – ele disse arremessando o pacote pardo em minha direção.
 
– Obrigada – falei alcançando o pacote. – Pode me desamarrar para eu comer?
 
– Para você correr pelo meio do mato de novo? – ele falou com rispidez – Sem chances! Se vira ai, amarrei tuas mãos, não tua boca. To fazendo muito de te deixar comer.
 
Ele virou as costas e bateu a porta com força ao sair. Com dificuldade peguei o pacote pardo retirando o pão amanhecido de dentro dele, mais uma vez comi sem reclamar sabendo que aquela era a única refeição do dia e meu estômago quase doía de fome. Por falar em dor, eu já conseguia movimentar meu tornozelo sem sentir nada, me restava apenas o desconforto de ter me deitado de mal jeito com os nós e as amarras.
 
O céu continuava fechado e uma pancada de chuva despencou do céu, eu continuei sentada encarando o chão sem ter noção do tempo que passou, meus olhos começaram a pesar pela noite passada em claro e cochilei com a cabeça encostada nos joelhos. Não percebi o momento que me deitei, mas foi assim que me encontrei quando abriram ruidosamente a porta. Me sentei com um salto enquanto o homem sem capuz agachava na minha frente.
 
– Presta atenção em como vai ser – ele disse apontando o dedo bem próximo ao meu rosto – eu vou soltar teus pés agora e a gente vai até o carro. Você vai bem boazinha, sem nenhuma gracinha ou eu juro que eu te mando pro teu pai com um furo na testa. Entendeu?
 
Assenti com movimentos rápidos e desesperados. Ele começou a desfazer o nó dos meus tornozelos deixando uma boa quantidade de corda pendurada a partir do meu pulso. Ele me fez levantar e com a corda remanescente fez algumas voltas em sua mão me puxando como se fosse algum tipo de coleira ou cabresto. O homem encapuzado aguardava no banco do motorista, ali fora éramos apenas eu e o do cabelo descolorido caminhando na chuva em direção ao carro, ele abriu o porta-malas e me mandou entrar.
 
– Por favor... – eu implorei.
 
– Entra logo – ele gritou.
 
– Não me faz entrar aqui, me deixa ir no banco de trás.
 
– Tá maluca? Teu pai colocou teu rosto em tudo quanto é horário na emissora dele, se virem você... – ele não completou.
 
– Eu fico abaixada, eu prometo... por favor...
 
– Entra. Logo. Nessa. Merda. – ele disse entre dentes.
 
Me ajeitei como pude naquele cubículo, o homem jogou a corda para dentro e fechou o porta-malas me deixando no escuro novamente. Eu havia me molhado bastante no trajeto até o veículo e sentia um pouco de frio, começamos a nos movimentar e dentro do carro eu ouvia novamente uma música baixa, depois de um longo trajeto comecei a ouvir barulho de outros carros, deveríamos ter entrado na área urbana, ainda assim não paramos.
 
O carro finalmente estacionou e desligou o motor, a música parou e ouvi as portas se abriram, mas eu continuei trancada ali. Os passos se aproximaram e eles começaram a conversar.
 
– Beleza cara, não vai ter erro. É ele quem vai levar a grana, não tem erro.
 
– Certo. Deixa comigo – reconheci a voz do cabelo descolorido.
 
Passos novamente, somente uma das portas se abriu e o carro voltou a andar. Passou-se bem menos tempo dessa vez, mas o barulho de carros diminuiu novamente, a estrada era acidentada e eu balançava muito dentro do porta-malas, eu tinha certeza que iria vomitar se aquilo não acabasse logo, diversas vezes precisei engolir o refluxo. Então paramos novamente e finalmente o porta-malas se abriu.
 
Devia ser por volta de meio-dia, o sol estava alto no céu apesar do clima ainda nublado, meus olhos doeram por conta da claridade e tive dificuldade de sair do carro e o homem dos cabelos descoloridos me puxou para fora com força me fazendo pisar na lama. O chão era apenas barro. Olhei em volta, eu conhecia aquele lugar, era o sítio do pai do Bernardo, mas dessa vez eu estava na estrada antes de entrar pela porteira. Fui puxada de trás do carro e lá estava ele há alguns metros de distância, uma mochila preta nas mãos, do lado de fora da camionete, os olhos negros estavam vermelhos e inchados aparentando um choro recente.
 
– A grana tá aí? – o homem atrás de mim gritou, Bernardo assentiu. – Abre pra eu ver.
 
Bernardo obedeceu e abriu a mochila devagar enquanto o homem ainda me segurava forte. Só nesse momento percebi que o revólver estava apontado para minha têmpora direita, eu podia sentir o gelado do metal em minha pele.
 
– Beleza, agora passa a mochila pra cá.
 
– Primeiro solta ela – Bernardo disse firme, mas o medo transparecia em sua voz.
 
– Você vai trazer a mochila até a metade do caminho, deixar ela no chão e voltar para o lugar que você está. Eu pego a grana e solto ela, entendeu?
 
De novo Be assentiu e obedeceu, caminhou um pouco rápido demais e o homem gritou para ele ir mais devagar, antes que chegasse muito perto, gritou para que ele parasse e deixasse a mochila no chão e voltasse para perto da camionete. Feito isso, fui impelida para andar, a arma ainda encostada em minha cabeça. Fomos até a mochila, ele me empurrou para frente com força me fazendo cambalear enquanto alcançava o dinheiro no chão.
 
Assim que me vi livre das mãos dele corri em direção a Bernardo o mais rápido que eu conseguia, mas o mundo parecia estar em câmera lenta. Be me aguardava com os braços abertos enquanto eu me aproximava. Um estalo alto me fez congelar, automaticamente percebi que era um tiro, me lancei ao chão com um grito. Tudo isso em um intervalo de 1 segundo. Atrás de mim o carro em que eu fui transportada acelerava para longe, Bernardo havia me alcançado onde eu estava no chão.
 
– Cami, amor. Você se machucou?
 
– Não, – ele me ajudou a levantar me abraçando – e você? Ele atingiu você?
 
– Não, olha. Ele atirou no pneu – atrás dele o ar vazava através do buraco de bala. – Você tá bem?
 
Eu não sabia responder.
 
– Cami, você tá de volta. Meu amor, você tá de volta! – novamente um abraço forte. – Deixa eu te ajudar com isso aqui.
 
Bernardo desamarrou a corda em meu pulso com cuidado vendo os machucados que elas causaram, sem me importar com quanto doíam abracei Be com força rezando para que aquilo fosse real. Era real. Os braços dele em volta de mim, a sensação de calor que emanava dele, o afago nos meus cabelos... eu realmente estava de volta, estava livre daquele pesadelo. Chorei de alívio, de gratidão. Eu só queria continuar ali abraçada com ele no meio do nada enquanto a chuva fina caia sobre a gente.
 

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