24 de Junho de 1986 (Terça-Feira)

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Estava presa em casa, assim me parecia. A minha tia trabalhava num relatório e na compilação das suas pesquisas académicas. Eu ajudava-a. Continuava no primeiro calhamaço, o que tinha mais páginas. No exterior estava calada e submissa, mas no meu interior gritava e estrebuchava. Não queria estar ali.

A manhã estava quase toda esgotada, passava um pouco das onze quando o telefone tocou. Rezei para que fosse novamente o instituto a requisitar a presença da minha tia. A minha prece foi atendida e tentei ocultar a alegria ao saber que ela, efetivamente, tinha de passar o dia todo lá. Fiz a minha melhor cara neutra enquanto me ia contando. Perguntou-me se eu ficava bem e, engolindo em seco, tentando não me denunciar, respondi que sim. Ela agarrou na mala e, a colocá-la ao ombro, indicou-me o bloco de notas que eu enchia de apontamentos com a minha letra redonda.

– Consegues terminar isso hoje?

– Sim, tia. Claro. Estou a terminar o primeiro livro e conto ir já para o segundo. E esse é mais pequeno.

– Vou precisar disso amanhã, sem falta.

– Não te preocupes. Acho que hoje termino.

Depois saiu e um espasmo de prazer percorreu-me. Já podia contactar Jean-Marie! Já podia ir ao hotel da Bélgica! Juntei as mãos no peito. E Diego... Não! Diego estava fora de cogitação. O selecionador argentino não me queria nos seus treinos. Rodopiei a rir-me sozinha. Recordava o beijo da noite anterior e sentia-me... nas nuvens.

Provavelmente nunca mais se iria repetir e obrigava-me a parar de construir castelos no ar. Diego estaria comprometido, aquele beijo não significara nada e eu só estava a fantasiar. Se não me iludisse demasiado acabava por não me desiludir na mesma proporção.

Bem, começando pelo princípio. Falar com Jean-Marie.

Fui buscar o pequeno cartão com os contactos à minha mala. Ao levantar o auscultador determinei que telefonar primeiro seria uma perda de tempo. Por isso, saí de casa, apanhei um táxi na rua de baixo – passavam com regularidade nessa via – e dirigi-me ao hotel da Bélgica. Este taxista já era mais simpático e sabia que a seleção europeia estagiava aí. Comentou comigo o facto e eu fiz-me de desentendida. Inventei uma mentira qualquer, relacionada com um primo que trabalhava no hotel a quem eu iria entregar um recado. Algo tão absurdo que o taxista me olhou pelo espelho retrovisor com a testa franzida.

No hotel deixaram-me entrar sem qualquer problema. Não foi preciso senhas e contrassenhas ou outro tipo de expediente digno de uma intriga de espionagem internacional. Eu estava dada como alojada ali e era mais uma hóspede.

Tive de esperar no átrio pela seleção. Estavam a treinar no estádio Azteca 2000, a preparar o jogo do dia seguinte. O célebre jogo do dia seguinte. A Argentina contra a Bélgica. Diego contra Jean-Marie – literalmente, pois Diego marcava golos e Jean-Marie defendia-os. Obriguei-me a esquecer a disputa e o que significava para o meu pobre coração dividido, para a minha alma que se embrulhava em dramatismos muitas vezes fúteis. Precisava de emoção, contudo, do exagero e do extremo, como o meu estômago precisava de comida.

Os primeiros jogadores começaram a chegar e eu saltei do sofá onde estivera sentada na última hora. Corri para os acolher. Recebi um abraço de Enzo Scifo e outro de Nico Claesen. Leo Van der Elst fez uma festa ao me ver e Philippe Desmet disse que era bem-vinda de volta. O meu sorriso esbateu-se. Não tinha a certeza se podia estar de volta e sabia, no meu íntimo, que aquele não era um regresso. Se voltasse a desaparecer, a minha tia haveria de revolver céus e terra para me encontrar e era no mínimo escandaloso que a polícia mexicana me fosse buscar ao hotel belga. A publicidade ao caso seria bastante prejudicial, para todas as partes, principalmente para a seleção.

Sonho de VerãoWhere stories live. Discover now