III

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Miguel estava convencido, à essa altura, de se precisasse se descrever com uma única palavra para alguém que não o conhecesse ainda, a palavra adequada seria "trouxa".

Começou com os treinos do time de futebol. Agora com ele sendo parte da equipe da sala, não podia recusar aparecer nos treinos marcados, seria muito errado de sua parte. E não era como se acontecessem todos os dias, era mais uma coisa semanal, raramente duas vezes por semana, e mais se parecia com uma pelada informal do que um treino de qualquer forma. Ele estava convencido dos garotos só chamarem aquilo de "treino" para terem uma desculpa para marcar tantos jogos na quadra assim, e Miguel não podia argumentar com a estratégia. Funcionava.

Então, por conta disso, ele vinha se reunindo com esses garotos bem mais do que lhe anteriormente interessava fazer. E, como uma coisa puxava a outra, em um dos dias se pegou aceitando ir comer um podrão depois da aula com eles. Para alguém não muito interessado em conversas, ou amigos, ele vinha traindo suas próprias imposições com uma habilidade quase invejável. Chegava a começar a imaginar quanto tempo levaria para desistir de vez das próprias imposições. Talvez, no fundo, de forma subconsciente, já tivesse desistido.

O que o fazia considerar essa hipótese era o momento presente. Era sexta-feira, e um dos jogos do torneio das salas marcados para aquele dia era o primeiro jogo de sua sala no qual iria participar. Era contra um dos times de terceiro, de acordo com Pedro não eram lá grandes coisas, mas não podiam dar mole com time nenhum e portanto todo jogo devia ser levado a sério. Miguel não podia deixar de concordar, afinal, sua turma estava brigando com outras duas para ter pontos para ir para as semi-finais. Todo jogo era jogo.

Naquela tarde, ele estava com Pedro em um dos cantos da arquibancada. Tinham chegado um pouco antes, e ainda esperavam o resto da turma aparecer. Sentados para ver o jogo, como Miguel já tinha acostumado a ver, estavam Clara, a garota por quem Pedro era visivelmente apaixonado, e Lucas, o melhor amigo que sempre andava com ela.

Miguel só estava naquela escola há algumas semanas e já achava incrível, pra dizer o mínimo, ver o quanto Pedro parecia ignorar os próprios sentimentos. Ele se perguntou diversas vezes se alguém tinha tido o tato de dizer a ele para seguir o próprio coração e, finalmente, decidiu que não lhe interessava se alguém já tinha feito isso ou não. Iria repetir a mensagem ainda assim.

— Você tá babando — comentou, apoiando o cotovelo na perna e o queixo na mão.

— Hã? Não tô não.

— Tá sim. Fala sério, você já tentou, sei lá, chamar essa menina pra sair? Vai que ela aceita.

Para o desespero de Miguel, a resposta de Pedro foi um bufar sarcástico. Ele passou a mão pelo cabelo, ajeitando os cachos afro por um instante antes de se virar para Miguel e perceber que realmente o garoto tinha falado sério.

— Tá de brincadeira? Eu? Chamar a Clara pra sair?

— É uai. Por que não?

Miguel franziu a testa, tentando identificar qual seria o impedimento tão óbvio na situação que ele não conseguia ver. Pedro continuava o encarando como se a resposta fosse gritante como um elefante de tutu dançando salsa, e Miguel continuou sem entender nada. De repente começou a se sentir burro. E incomodado. Ele franziu a testa, encarando Pedro um pouco irritado por não receber resposta nenhuma e por fim o amigo pareceu desistir. Suspirou, pegou o rosto de Miguel e o girou até estar de frente para Clara.

— Olha bem pra ela. Tá olhando?

— Tô, caramba.

— Ótimo. Agora — ele girou o rosto de Miguel de novo, agora para que ele o encarasse. — Olha pra mim. Não tá vendo nenhuma diferença gritante não?

Tempos ModernosWhere stories live. Discover now