A Teoria da Chuva

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Gatilhos: menção à crises psicóticas.
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Seguiu desconfiada com a impressão de que todas as escopetas, fuzis, espingardas e pistolas que encontrou pelo caminho miravam sua cabeça.

Adentrando o morro do Cabo, Malta desconfiava mais do mundo ao redor a cada passo. Quanto mais pensava na merda que Phelipe fez em atacar a rainha da favela por puro despeito, mais temia a chance de Krystal lhe atrair para uma armadilha segundo o ditado de pagar na mesma moeda.

Tarjou todos de provável inimigo, dos vapores e guerreiros aos animais e crianças perdidos em meio à chuva que ajudava a castigar os pobres. O que caralhos foi fazer nesse lugar horroroso e mal cuidado que agora fedia à urina dos viciados e cheiro de cão molhado? Maldita hora que achou que o serviço voluntário ajudaria a limpar sua barra com o pai e trouxe tantas desgraças, nenhuma maior que arriscar o próprio posso por conta da burrice de seu noivo.

Como se não bastasse correr atrás da mulher de um traficante barra pesada. O que ele pensou? Que atentaria contra Marola sem consequências? Sorte a deles não serem denunciados ainda! Imaginar a surra que ele lhe daria mesmo acamado caso não ludibriasse Krystiellen até que ele pudesse arquitetar a tal vingança corroeu-lhe o estômago.

Encarou o vômito ácido que a correnteza levou em segundos, limpou a boca num lenço destinado à próxima lixeira. E se largasse tudo e se enfiasse no próximo avião para a Argentina? E se abandonasse Phelipe, suas loucuras, agressões e as provas contra ela? Merda, não o podia deixar. Ao menos não vivo. Poderia fazer jogo duplo se passando por vítima e deixar que a TdC resolvesse seu problema, que tal? Com ele morto, sua vida seria muito mais fácil, alguém lhe escutou balbuciar e correu rezando Ave Marias.

Acreditariam caso se dissesse inocente? Se colocasse toda a culpa em seu cúmplice? Comprariam sua versão coitadista? Não enxergava em Marcílio tamanha inocência, mas Ellinha lhe parecia ingênua o bastante para se apiedar de seu choro. Em momento algum se arrependia de tramar contra ela e precisar da sua ajuda rasgava seu orgulho em mil pedaços. Sequer se lamentava de se deitar com o suposto marido da outra mais pelo deboche que pela droga e o orgasmo que conseguiu, ainda que essa história pudesse ter outros contornos sem ciúmes que levaram Phelipe a dar o troco no traficante.

Na real achavam a pena abortar missão sem prejudicar Krystiellen como queria, mas antes da satisfação vinha a ânsia de salvar a própria pele. Poderia jogar o dossiê e mal feito e sem provas contundentes do envolvimento dela com o tráfico na internet deixar o público decidir se a julgava culpada pra não dar viagem perdida, talvez? Nem Malta soube explicar o quê incomodava tanto na falsa amiga arquitetar sua tragédia. Culpa do jeito sonso de menina adorável e inocente que sempre enganou a todos, com sua exceção. Dessa imagem santificada que conquistou mentindo na cara dura. Da audácia de passar por voluntária social em prol de um povo oprimido pelas forças criminosas liberadas pelo dono da rola que chupava no fim do dia. Hipócrita Krystal causando nojo em quem de fato conhecia sua verdadeira face: só mais uma piranha de bandido com sorte de ser um pouco mais esperta que a maioria até na hora de achar um macho bom.

Riu por impulso e viu Marola como um frouxo. Ainda teria o prazer de chamá-lo corno diante da favela inteira, imbecil. Difícil imaginar bandido vivendo uma relação livre e ignorou tranquila essa possibilidade por puro prazer. Frouxo, isso que ele era! Não servia nem pra colocar limites na mulher e imaginar homem tão bruto murchando dócil na conversa mole de Ellinha cortava qualquer tesão. Respeito te assusta? Amor te assusta, Malta? Amor, amor... E essa merda lá existia? Vai ver, pra outros, pra eles... Pra ela jamais.

Coçou o rosto. O volume de pele descamada sob suas unhas não alarmava mais. Lábios repuxando e o interior da boca seco clamando por um cigarro. As narinas cortadas por dentro e cansadas de captar o cheiro de pobreza pediam por pó. Esfregou a ponta ardente do nariz e sacudiu a cabeça em movimentos curtos. Espirrou sangue e evitou olhar nos vidros dos carros estacionados por ali para não assistir sua derrocada deplorável. Alguns fios de cabelo encurtados por enfraquecerem ao ponto de não suportar o peso dos dreads. Os braços vazios como o coração dilacerado a cada memória do filho que não nasceu. Um sorriso literalmente amarelo.

A Teoria do CorreWhere stories live. Discover now