A Teoria das Histórias Mal Contadas

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Preguiçosos e irritados olhos azuis descobriram já ser dia.

Os braços de Malta deixaram de abraçar a barriga para apoiá-la sentada com dificuldade em piso fofo. Dores leves pelo corpo, hematomas pela pele e um enjoo forte expulsou do estômago tudo o que armazenou antes dali. Com o polegar limpou o lábio. Atordoada, tocou a cabeça inchada e um forte cheiro de sangue seco invadiu suas narinas. Gritou assustada diante das secas manchas vermelhas entre os dedos.

Desperta pelo susto, desconfiou da tranquilidade suspeita desse ambiente possuído por aroma de terra fresca, brisa matinal e o som dos pássaros insuportável à enxaqueca pós trauma ora substituído por um silêncio tão assustador quanto pacífico. Onde estava? Como chegou ali? Piscou vagarosa até recobrar mais da consciência.

Suas vistas embaçadas descobriram folhas secas no chão úmido. Matou a sede com a chuva breve, lavou também o rosto e alastrou do sangue pelo rosto, irrelevante. Corpo bem quente se considerar uma noite inteira ao relento em noite gélida, só então se percebeu coberta por um blazer. Parecia ser o de Phelipe... Phelipe!? Deu falta dele, enfim, e o sumiço trouxe alívio.

Riu uma vitória insana. Sobreviveu a mais uma noite de perversidades, por hora estava livre. Livre... Sem Phelipe estava livre. Gargalhou mais, profunda e desacreditada. Sujou o rosto de lama ao tocar o lábio entreaberto em comemoração. Sem Phelipe estava... Sem Phelipe... Por Dios! Phelipe! Mirou os lados, nem sinal dele e nem de... Marola!? Pavor substituiu a plenitude, temeu o hipotético inimigo à espreita, algo improvável em diversos sentidos. Viu mesmo Marola antes do desmaio? Presenciou o temido encontro entre os dois amanheceu viva? Que milagre impensável! Sacudiu a cabeça, verificou ao redor novamente e se viu só na montagem de um quebra-cabeças com os fragmentos de memória enfraquecida pela pancada. Que fim teve a briga, os tapas, o invasor? Onde eles estavam? Aliás, onde ela estava?

Pela mata fechada ecoaram seus clamores desamparados, nem sinal de ajuda ou identificações, apenas um monte de plantas, bichos miúdos e uma grande pedra no caminho de suas retinas tão fatigadas. Nunca esqueceria dessa pedra, recordou dizer anos antes, e graças a isso reconheceu a área como uma parte mais intocada do Parque Nacional da Tijuca, das trilhas que costumava fazer antes do noivado. Ali gravou seu nome, a data em que a encontrou pela primeira vez e jurou retornar mais vezes, que hora terrível para um reencontro. Acometida pelas vagas memória de suas "jornadas de autodescoberta", suspirou saudade e fracasso ao comparar a bravura do passado valente com sua atual versão acuada em terreno conhecido, ou melhor dizendo, conquistado. Quantas vezes não mudou a rota de viagem, ludibriou guias ou amigos mais experientes em busca da glória de encontrar o próprio caminho independente dos obstáculos neste? Pela honra da desbravadora adormecida pelo medo, secou o pranto, despediu-se da rocha com um breve abraço e ignorou a tontura disposta a sair de qualquer que fosse o buraco onde a enfiaram dessa vez.

Vagou, vagou. Não ouviu som de cachoeira, tampouco de outros passos. Apenas seus pés marcavam o solo e a terra remexida indicava a cautela com que quem a trouxe apagou as próprias marcas a cada movimento, trabalho profissional. Tremeu com a hipótese de malandro tão astuto surpreendê-la no caminho interminável. Os pés cansados imploraram pausa e Malta descansou sob uma árvore. Ofegante, tocou o ventre responsável por drenar suas poucas forças e, em simultâneo, pela garra de perseguir a saída do labirinto-flora porém de nada servia a força de vontade sem um plano de fuga decente. Sem celular ou mapas, foi ridículo apostar num longínquo conhecimento anterior para vasculhar a área, porém local famoso assim contava com vários guias, observatórios, trilhas bem cuidadas e turistas capazes de ajudá-la, esperou. Ainda cedo para os visitantes, contudo deveria achar pelo menos uma placa de informações, certo? Coração disparado com a esperança de encontrar cada vez menos vegetação selvagem. Encontrou enfim um caminho de pedras literal, desses talhado pelo homem no chão e muito mais fácil que o filosófico enfrentado por ela a cada novo amanhecer.

A Teoria do CorreWhere stories live. Discover now