2 - A maciez daqueles belos lábios

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Com treze anos, fui acolhida por um orfanato na cidade, gostava das crianças de lá, eram simpáticas, normalmente tínhamos que ajudar com a limpeza e os serviços gerais, afinal, não estávamos lá de graça e precisávamos fazer algo para continuar lá.

Aos dezesseis anos abandonei o orfanato, passando a viver por conta própria, e daí em diante marchei rumo à minha liberdade, queria me sentir adulta, como toda criança.

Viajei por algumas cidades, e então adoeci, senti o mundo cair sobre mim, senti o peso de toneladas ao notar a fraqueza súbita que se abateu sobre mim, visitei os curandeiros, mas não houve um que conseguisse encontrar a causa daquela marca que crescia em meus braços e provocava dores pungentes e alucinantes.

Eu me vi em um dia qualquer, no bar de uma estalagem, enquanto comia, escutando o bardo narrar as mais fantasiosas histórias. O homem gorducho começou uma história sobre a cicatriz amaldiçoada que punia os pecadores, torturando-os até a morte, as pessoas arregalavam seus olhos em horror enquanto o escutavam.

Era um mito, uma lenda, um conto inventado para entreter os ouvintes ávidos por uma narrativa emocionante, mas eu sabia, sentia a dor queimando em minha pele, a sentia percorrer meu corpo como um verme maldito, mastigando e engolindo-me lentamente, fazendo-me agonizar dolorosamente.

Me perguntei se era coincidência, me perguntei se o bardo vira as marcas através das minhas mangas compridas e fantasiou mais um conto empolgante para atrair a atenção do público e oferecer à minha alma desgraçada uma vã esperança de descanso.

Esperei-o terminar de narrar, mudei a tonalidade de minha voz, e falei em voz alta, sem me esquecer de elogiá-lo, as pessoas gostavam de elogios:

"As marcas que crescem continuamente sobre os braços, amaldiçoando com a pior das mortes as pessoas que as têm, o que pode extingui-las, sábio homem?"

Ele coçou o bigode com as mãos gordas, seu chapéu redondo e espalhafatoso balançando-se, ameaçando cair de sua cabeça.

"Contou-me o erudito que nas montanhas está a cura. Não me especificou o que é, disse-me que saberei quando a ver, mas atrevo-me a dizer que as montanhas do oeste são igualmente amaldiçoadas, apenas os feiticeiros ousam adentrar aqueles terrenos impregnados com o fedor da morte. Mas não tenho a bravura dos feiticeiros, perdoe-me, meu rapaz, por não poder dizer-te mais sobre a cura, mas asseguro-lhe que a lenda é verdadeira, tal qual muitas das histórias que ousei contar esta noite."

Sua fala foi finalizada com uma saudação pomposa, e o homem tomou o bandolim que trazia consigo, e tocou uma leve melodia enquanto cantarolava uma série de canções que provavelmente compôs.

O público bebia e conversava entre si, divertindo-se com as canções do gordo. Com essas palavras, lembrei-me que usava roupas folgadas e masculinas, para me assemelhar a um rapaz magro e franzino.

Sabia que aquelas palavras eram irreais, ainda era uma lenda, no fim das contas, mas não tive tempo para verificar sua veracidade. Após aquele jantar, parti imediatamente em uma jornada sem volta.

Eu era ambiciosa, ambiciosa por uma vida confortável, não tinha amor pela vida, mas a morte era repugnante demais.

***

Senti meu corpo livre novamente. Com aquelas visões, pude recuperar o ânimo de viver, as órbitas ainda estavam lá, inertes, em sua tentativa de oprimir-me novamente, mas não dei a elas tal oportunidade.

Saltei com toda a força que consegui reunir, pondo-me, ainda cambaleante, a correr desesperadamente e sem rumo pela montanha. Não pensei, permiti que meus pés me levassem para outro lugar, não importasse qual, desde que para longe daquela criatura com olhos hipnotizantes.

Senti a fraqueza apoderar-se de mim novamente, e uma dor ardente tomar conta de meu corpo devagar e continuamente. Surpreendentemente, consegui enxergar as árvores novamente, como se houvesse uma luz cuja origem eu não conseguia identificar, então pisei no ar, tropeçando.

Finalmente, saí de meu estupor, dei-me conta de que não havia mais chão, tampouco folhas secas, estava em queda livre. Senti o vento frio misturando-se à dor ardente, como se lutassem entre si para decidir qual -deles me faria sentir mais dor, parecendo antepor por fazê-lo juntos.

De repente, como se lentamente, pude ver a lua. Era redonda e brilhante, com seus raios prateados embalando-me em um abraço terno, desviei meu olhar para as montanhas, pude ver o solo por debaixo das folhas, era vermelho escuro como vinho, de fato.

Uma pancada forte me atingiu, e logo as minhas roupas ficaram molhadas, e meus ossos sentiram o impacto, a dor era alucinante. Vislumbrei o brilho da lua através da água, o azul escuro infiltrado pelos fios prateados, deslumbrantemente deleitando os meus olhos.

Afundei naquelas águas, meu corpo não tardou a procurar furiosamente por ar, meus pulmões se enchendo com líquido, comecei a me contorcer violentamente, mas a fraqueza e os ferimentos frustraram minha luta contra a água que me envolvia.

Não estava preparada para saudar a morte, mas pude apenas impotentemente esperar por ela enquanto afundava cada vez mais. E ela veio.

Chamei-a de morte, mas o que vi foi uma bela mulher vestida em roupas cor de vinho, como o solo das montanhas, aproximando-se de mim com uma lentidão que me torturava e me amedrontava profundamente.

Observei seu sorriso elegante, os cabelos balançando-se conforme a água se movimentava, seus braços presos em correntes prateadas que pareciam impedi-la de sair das águas.

O vestido vermelho cobrindo seu corpo esbelto e sensual, maravilhei-me com a beleza de suas curvas. Seus movimentos fluidos e relaxados, como se a água fosse o seu lugar, sua morada, como se fosse feita para ela, o seu mundo.

Finalmente, a mulher parou próxima a mim e me segurou, as cicatrizes em meus braços se acalmando de repente.

Eu as vi brilhar e, por um momento, esqueci que meu corpo se contorcia à procura de ar, senti-me morrendo aprazivelmente.

Mas então, lábios macios tocaram os meus rachados, a suavidade engolindo-me em uma sensação desnorteante, estremeci de prazer ao sentir a maciez de seus lábios, e então, a dor se foi, e eu me perdi nos encantos daquela bela mulher.

Misty (Girl's Love)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora