3 - Vermelho como o vinho

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Ela me encarava veementemente, com olhos obsessivos que continham uma profundeza impenetrável. Era medonho, vê-la lutar tão eloquentemente contra a barreira que nos separava, uma expressão doentia pairando em seu rosto, as unhas tornando-se cada vez mais sangrentas a cada soco fervoroso desferido contra a camada invisível que a impedia de me alcançar.

Pisquei em confusão, aquela criatura mórbida não se parecia com a mulher em minhas memórias, era selvagem e incontida, exatamente o oposto da mãe que me ensinou a sobreviver.

Estava escuro, muito escuro, minha vista deplorável não conseguia ir muito longe, e eu mal podia discernir o rosto familiar que me encarava com destemor. Sim, eu pensei, não houve engano, é realmente ela, concluí.

Desde a morte da minha mãe, me recusei a chorar, mesmo em momentos de desespero, preferia cravar as unhas em meus braços a permitir que aquelas lágrimas escorressem de meus olhos novamente, em vez disso, eu gostava de sentir a dor ardente e o sangue fluindo dos ferimentos causados pelas unhas em direção aos meus dedos. Mas neste momento, contra a minha vontade, senti as gotículas molhando minhas bochechas, impetuosas em sua trajetória.

Eu sabia, era angústia, apertando o meu peito, impedindo-me de respirar, roubando-me o ar que restou em meus pulmões, sabia o que significava, conhecia o desejo mais profundo de meu coração: revê-la.

Rever a mulher cuja vida havia sido perdida, a minha mãe, mas eu havia sido agraciada com aquela visão perturbadora, e não consegui evitar a dor que se alastrou como uma praga pelo meu corpo, fazendo-me encolher em posição fetal, causando-me tremores abrasadores. As lágrimas não paravam de deixar meus olhos, e embora eu os tenha fechado, não conseguia esquecer a cena da mulher enlouquecida com nada além de ódio e obsessão em seus olhos.

Não houve a usual gentileza, a tenacidade que confortava-me e trazia-me uma paz serena. Então, lembrei-me daquele dia, a conversa com o bardo, as marcas negras manchando os meus braços, abri os olhos e olhei para eles, e lá estavam elas, enredadas como os galhos de uma trepadeira ao redor dos meus braços, sobrepondo-se às cicatrizes que causei a mim mesma em meus momentos de desalento.

As memórias atingiram-me como um turbilhão, acumulando-se em minha mente e rapidamente levando-me à exaustão, levei as mãos contra a cabeça em um gesto desesperado, na vã tentativa de conter o impacto sobre mim. Mas o peso maciço continuava oprimindo-me impassivelmente, fazendo com que mais e mais lágrimas escorressem pelas minhas bochechas, senti-me fraca novamente, indefesa.

Na aflição do momento, tomei uma grande lufada de ar, e então, o peso me deixou. Com dificuldade, forcei-me a me acalmar, tentando respirar normalmente de novo, senti meu corpo frio, e um vento gelado soprando em meu rosto.

Minha cabeça ainda doía, mas o desespero havia ido embora, deixando apenas o alívio e a calmaria que me permiti sentir por um curto momento, então abri os olhos. Deparei-me com um rosto fino e delicado, envolto por cabelos longos e ainda molhados.

Estreitei os olhos, ainda atordoada, e por fim me dei conta de que estava deitada sobre o colo de alguém. Levantei-me abruptamente, esfregando as têmporas, e me afastei de quem quer que esteve me observando enquanto eu estava mergulhada em pesadelos.

Levei alguns segundos para processar o que tinha acontecido, senti meu corpo frio, e meus cabelos úmidos. Então os últimos acontecimentos vieram à tona em minha mente: as órbitas, a colina, as águas, a mulher.

Ergui a cabeça de repente para olhar para a mulher pálida vestida em roupas vermelhas como vinho, o luar que iluminava seu rosto tornava-a ainda mais pálida, eu não havia capturado muitos detalhes debaixo d'água, mas agora pude analisá-la mais atentamente: ela possuía feições delicadas e suaves, olhos negros, tal qual os cabelos emoldurando sua face, lábios rosados e ligeiramente carnudos, o mesmos que tocaram os meus sob os raios prateados da lua.

Misty (Girl's Love)Where stories live. Discover now