Parte 1

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Chester, Inglaterra, 1806

O ar da noite pairava úmido no cemitério, com uma gélida névoa envolvendo os contornos das sepulturas e das criptas silenciosas.

O vigia da noite aceitou seu suborno e saiu.

- Vinte minutos – avisou. – Nada mais.

Eles precisariam de cada segundo e, portanto, trataram de agir depressa. Dedos sujos tatearam em torno de uma tumba recém-lacrada, em busca de uma fresta onde inserir uma barra de ferro. A barra de metal enferrujado grunhiu entre as paredes de pedra e a porta de ferro, e a tranca cedeu com um baque ruidoso, o lacre se partindo.

Os homens empurraram com força, até que a porta começou a se abrir lentamente, desprendendo o ar fétido de antigos restos mortais.

Um pequeno lampião foi aceso, revelando dois corpos masculinos. Um deles morto havia alguns dias, inchado, rijo e acinzentado, o outro colocado sobre uma laje de pedra apenas naquela manhã, descorado e inerte.

Os ladrões despiram os corpos antes de colocá-los em sacos de estopa, ofegando com os esforços, alheios ao mau cheiro. Já em estado de decomposição, o cadáver mais velho renderia apenas metade do preço, mas com a quantia equivalendo a três meses do salário normal deles, ainda valia o risco. O que estava fresco, porém, renderia o dobro, e havia sido em busca dele que tinham ido lá.

O espécime era excelente: um homem de aproximadamente trinta anos, de corpo musculoso e desprovido de ferimentos.

Um sino abafado tocou duas vezes em sinal de alerta. Os ladrões atiraram os corpos ensacados por cima dos ombros e apagaram o lampião.

Desaparecendo na escuridão, desceram as colinas ondulantes correndo até o pinheiral onde haviam escondido sua carroça.

Com trapos amarrados aos cascos dos cavalos para abafar o som, conduziram sua carga macabra pela área rural, deixando a cidade murada de Chester para trás enquanto prosseguiam até o rio Dee.

Entre assobios e puxões, instigaram os cavalos a subir com a carroça na pequena balsa. Uma vez a bordo, ocuparam-se em firmas as rodas com cordas grossas. Remaram, então, em direção oeste pelo rio até cruzarem a fronteira com o País de Gales.

Chegando do outro lado, conduziram a carroça por uma trilha estreita que levava através do vale entre duas montanhas escarpadas. Pequenos pontos de luz amarelos avistavam-se na distância: o vilarejo de Penarlâg.

Prosseguiram, passando por campos escuros e enevoados com ovelhas e muros de pedras cobertos de limo. Nas imediações a norte do vilarejo adormecido, situava-se a propriedade quase em ruínas de Rhys Saviñón.

Carregando os corpos até os fundos da casa, os ladrões largaram-nos à porta. Um alcançou a corda pendurada ao lado e tocou o sino. Esperaram um longo tempo antes de tocá-lo outra vez. Pela recompensa que os corpos propiciariam, esperariam a noite inteira.

A porta finalmente foi aberta, revelando uma jovem de aspecto desgrenhado pelo sono. Sob a luz amarelada dos lampiões, os olhos acinzentados dela eram translúcidos, os cabelos negros como ébano brilhava com uma mecha branca, como uma raio cortando um céu escuro. Havia muito, os aldeões a chamavam de bruxa, atribuindo sua aparência estranha a um pacto feito com o próprio Satã.

Dulce Saviñón arqueou uma sobrancelha, enquanto olhava para o amontoado no chão. Sua expressão zombeteira fez os homens recuar um passo.

- Dois?

- Sim – confirmou um dos ladrões, chutando um dos corpos com a ponta da bota. – O grandalhão é carne fresca. Acabou de ser sepultado esta manhã.

- Vou buscar o pagamento de vocês. – Ela se ausentou apenas por um instante, voltando com um pequeno saco de couro. Entregando-o, instruiu: - Voltem daqui a uma quinzena se conseguirem encontrar uma mulher.

Enquanto os ladrões partiam, ouviram um ruído que pareceu um misto de riso e soluço, desaparecendo feito névoa na noite fria e escura. Os dois se entreolharam e, sem uma palavra, afastaram-se depressa.

Os mortos pútridos não eram nem de longe tão assustadores quanto uma bruxa viva.

Dulce ajeitou melhor o robe em torno de si, com o frio da madrugada fazendo-a ansiar por um fogo de turfa e um chá quente. Mas com os dois corpos junto à porta dos fundos, não tinha tempo para tais luxos. Adiantando-se rapidamente pelos corredores de pedra de superfície esfarelada e pela escada em caracol que levava aos aposentos principais, preparou-se mentalmente para o que viria. Bateu com força à porta do pai.

Ofegante, obrigou-se a se acalmar, esperando com temor para descobrir qual era a encarnação do pai que a receberia.

Poucos momentos se passaram antes que Rhys abrisse a porta. Dulce notou de imediato que ele usava um camisolão relativamente limpo, abotoado até o queixo. Os olhos pretos, atentos como os de um falcão brilhavam, límpidos e aguçados, sob as sobrancelhas grossas e escuras. Uma onda de alívio deu lugar à apreensão de Dulce.

Não se desculpou por tê-lo acordado. O pai, com certeza, teria ficado furioso se ela não o fizesse.

- Temos uma entrega. São dois desta vez.

- Dois? Bem, então ficaremos bastante ocupados, não é mesmo garota? Muito bom. – Rhys esfregava as mãos para afastar o frio. – Acorde Drystan. Vou colocar minhas roupas de trabalho e encontrarei vocês lá em baixo.

Dulce não objetou, embora tivesse a impressão de que o coração saltaria pela boca. Obedeceu, indo bater à porta de Drystan. Como ele geralmente estava bêbado nas noites em que não trabalhava, custou a acordar. Quando abriu a porta, os odores de pelo por lavar, roupas de cama sujas e arrotos impregnavam ao seu redor.

Ouvindo o aviso dela, grunhiu em resposta e seguiu pelo corredor. Como parte de suas incumbências, Drystan colocaria os corpos para dentro, os retiraria dos sacos de estopa e os estenderia em mesas estreitas no porão.

Segredos Obscuros - AdaptaçãoWhere stories live. Discover now