Parte 3

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- Não! - exclamou Dulce, horrorizada. - Isso é assassinato.

Rhys não se moveu, mas sua voz endureceu, impiedosa.

- É um trabalho necessário o que estou fazendo, agora saia daqui e deixe que eu cuido disto.

- Não posso, não sairei. - Dulce pousou as mãos sobre o ferimento que sangrava. O peito do homem estava excessivamente frio e não havia batimentos cardíacos perceptíveis, mas ele estava vivo. O sangue era prova disso. - Se o senhor assassinar este homem, eu revelarei a todos.

- Ninguém acreditaria em você - declarou ele, com convicção e um brilho sinistro nos olhos. - Todos acham que você é uma bruxa, ao passo que eu sou um anatomista respeitado.

- Eles acham que o senhor é um demônio carniceiro - retorquiu Dulce sem hesitar. - Temem que, quando olha para eles é com o anseio de retalhá-los por dentro.

- E olho. - Rhys sorriu com uma expressão macabra que condizia com a acusação da filha. - Somos todos carne sobre pés, garota. Algum dia, eu encontrarei a parte secreta que faz tudo funcionar. A essência de nossa humanidade. Tem de estar aí dentro. - ele olhou para o homem cujo corpo se agarrava ao mais tênue fio de vida. - Aqui está um homem à beira do precipício. Qual é a parte de seu corpo que controla o momento da queda?

- Talvez seja Deus, e o senhor não tem o direito de interferir.

Rhys mergulhou o dedo no sangue, esfregou-o como se quisesse sentir a textura, aproximou-o do nariz e cheirou-o.

- Ele está quase morto. Sinto como sua pele está fria e sem vida, até o sangue está frio. Não durará muito, mas pensa na oportunidade aqui, explorar e ver se consigo encontrar o elo entre o espírito e a carne. Esse é o trabalho da minha vida, este é o momento pelo qual estive esperando.

Dulce inclinou-se para frente, protegendo o homem com seu corpo. Encontrou os olhos do pai e ousou ameaçá-lo.

- Faça-lhe algum mal, e eu juro, exporei o senhor primeiro diante de todos, e depois tirarei minha própria vida. Não viverei na casa de um assassino, nem viverei com isso dentro da minha própria consciência, preferiria morrer.

Dystan entrou de volta no calabouço com canecas e pratos sacolejando numa bandeja. Pousou-a numa pequena mesa de trabalho antes de se aproximar do homem que sangrava.

- Ainda não está morto? - indagou, surpreso.

Dulce ignorou-o. Manteve o olhar fixo em seu pai, estudando-o intensamente. Sabia que não devia demonstrar medo, nem fraqueza. Só não sabia quanto significava para o pai, considerando a maneira como sua busca o obcecava.

Esperando que ele não tivesse perdido o juízo por completo, fez um gesto na direção do cadáver parcialmente dissecado na outra mesa.

- Acabe seu serviço naquele corpo antes que o cheiro o obrigue a enterrá-lo. Deixe este homem comigo, cuidarei dele durante alguns dias, se morrer será seu, e nenhum assassinato ou suicídio manchará a sua consciência.

- Não receberei ordens, nem ameaças da minha própria filha! - retrucou Rhys com a faca posicionada perigosamente acima do abdômen do homem estendido na mesa entre ambos. - Como se atreve?

Dulce mudou de ideia.

- Papai, eu suplico. Se significo algo para o senhor, qualquer coisa, poupe a vida deste homem por mim. Por favor, estou implorando.

Sob a luz amarelada dos lampiões do sebo, Dulce viu uma mudança nos olhos do pai. Pareceu magoado e talvez um tanto constrangido.

- Você jamais se pareceu tanto com a sua mãe quanto neste momento.

- Não sou como ela.

- Você acha que sou um monstro. - Rhys soou distante, mas continuava a segurar o cabo da faca com firmeza acima da barriga do homem. - Se pudesse ter ido embora com ela, você também teria me deixado? Diga a verdade.

Dulce se lembrava do dia em que Tânia deixara o casarão. O dia amanhecera como sempre, mas havia algo errado. As lareiras tinham sido acesas, o desjejum servido, mas a senhora da casa não se achava à mesa e o pai estava sentado de cabeça baixa. Virou-se para Dulce, então com apenas treze anos:

- Você é a senhora da casa agora.

E agora o pai ousava fazer a pergunta que pairava entre ambos durante todos aqueles anos. Ela teria partido com a mãe se esta lhe tivesse pedido para ir junto?

A dor causada pelo abandono de Tânia nunca se dissipara. Nem tampouco o anseio pelo carinho, riso e presença da mãe.

- Claro que não, papai - mentiu Dulce. Em vez da verdade, disse exatamente o que sabia que ele queria ouvir. - Minha lealdade é para com o senhor. Sou Dulce Saviñón, a orgulhosa filha de Rhys Saviñón.

Ela observou o peito do pai se inflar de orgulho diante das palavras. Em seguida, tornou a mudar. Suas alterações de humor eram perigosas.

- Você tentou ir embora.

- Já disse antes, papai, que só tive a esperança de encontrar a minha mãe e trazê-la de volta para casa. - As mentiras só deixavam Dulce mais ciente do íntimo desespero por sua submissão ao próprio destino. Quisera escapar, planejara isso por tanto tempo que havia sido a única coisa que mantivera sua sanidade, mas após a noite em que os cães a atacaram, ela não tivera mais coragem para tentar novamente. - Não tenho sido uma boa menina? Feito tudo o que tem me pedido?

O silêncio pairou entre pai e filha, e ambos se entreolharam longamente. Drystan afastou-se, ocupando-se em recolher os sacos de estopa em que os corpos haviam sido levados. Enquanto os dobrava, algo tilintou no chão de pedra.

Dulce não se atreveu a olhar na direção do ruído, porém manteve a atenção no pai. Pelo canto do olho, viu Drystan se agachar à procura do que caíra no chão.

Sob a luz bruxuleante dos lampiões, ela viu qual foi a decisão de Rhys. Tirando a pistola da cintura, apontou-a para o pai.

- Largue a faca. No chão.

Rhys gelou. Sabia que Dulce não erraria. Largou a faca, que caiu com um som metálico no chão de pedra, e como ela continuou a apontar a arma, ele ficou zangado.

- Não pode estar levando isso a sério!

- Uma filha não aponta uma arma para seu pai se não for a sério - retorquiu ela com firmeza. - Dê um passo para trás.

Rhys contraiu o rosto, como se tivesse sido esbofeteado.

- Você não faria isso!

Segredos Obscuros - AdaptaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora