Parte 4

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- Se houver um assassinato neste calabouço, não será o desse pobre homem indefeso.

Dulce pensou depressa, formando planos. Nada mais de ser a bruxa num casarão caindo aos pedaços. Levaria aquele homem e deixaria o País de Gales, de uma vez por todas. Como a mãe fizera no passado, ela fugiria e ninguém ali nunca mais a veria.

Todas as noites que passara sonhando em fugir serviram, enfim, a seu propósito. Tinha tudo que precisava: dinheiro roubado e mapas que lhe haviam sido dados pelo bondoso mercador, a única pessoa que já fora solidária e gentil com ela.

- Drystan, pegue-a! - ordenou Rhys.

- Tente Drystan - disse Dulce com um sorriso e falou com franqueza ao pai. - Tenho desejado atirar nele há anos pela maneira pervertida com que olha para meu corpo e por seus avanços nojentos quando está bêbado. Vá em frente e arrisque a vida do único homem que ficou ao seu lado desde que começou com sua obsessão de carniceiro. Atirarei no meio da testa desse imprestável de muito bom grado.

Absortos pelo momento, nenhum dos dois notou que o homem deitado na mesa entre ambos abriu os olhos. Drystan percebeu, e começou a sussurrar uma prece, implorando a piedade de Deus enquanto escondia o que apanhara do chão.

A voz de Rhys soou ameaçadora.

- Está fazendo um jogo perigoso, Dulce. Baixa essa arma agora, e eu não a punirei.

- Afaste-se desse homem! - ela ordenou, sua voz reverberando pelas frias paredes do calabouço.

A risada de Rhys ecoou antes de ele esbravejar:

- E depois fazer o quê? Prosseguiremos com nossas vidas e deverei fingir que a minha própria filha não apontou sua arma para mim e ameaçou minha vida?

- Não - respondeu ela, calmamente. - Não faremos isso. Drystan, pegue meu pai, à força ou de espontânea vontade, não me importa.

Drystan alternou um olhar entre ele, o homem deitado na mesa e Rhys, parecendo ponderar onde havia maior perigo.

- Isso mesmo, Drystan. Matarei você se não me obedecer - confirmou Dulce com certo prazer. Retirou o punhal do cinto. - Pegue-o e coloque-o numa cela.

- Isso é loucura!

- Agora, Drystan, ou fincarei meu punhal no seu peito e ainda terei uma bala para acabar com você.

Ambos os homens sabiam do que Dulce era capaz, e isso intimidou Drystan, pois ele se adiantou até Rhys. O velho homem se debateu, mas Drystan era bem mais rápido e forte. Ele agarrou Rhys pelo braço, colocou-o na cela mais próxima e fechou a porta.

- Agora, tranque a cela e me traga a chave.

- Eu vou surrá-la até que você perca os sentidos, garota! Arrancarei a sua pele! - bradou Rhys, segurando as barras de ferro.

Dulce ignorou o pai.

- Carregue o homem para cima, embrulhe-o em mantas de pele e cobertores.

- Ele está acordado - sussurrou Drystan.

Dulce baixou o olhar e viu que o desconhecido havia acordado. Encarava-a intensamente.

Ele desviou os olhos para a cela onde o pai dela berrava, exigindo que o libertassem. Apenas arqueou uma sobrancelha de leve, com ar inquiridor.

- Você viverá - assegurou Dulce e, como o homem não parecesse compreender as palavras, ocorreu-lhe que ele provavelmente não falava galês. Fitando-o, repetiu as palavras em inglês. - Você viverá.

Permitiu-se então, tocá-lo de leve no braço. Ele continuava muito frio, porém estava lutando pela própria vida. Ela também lutaria, não só pela vida dele, mas pela sua também.

- Ele voltou à vida - disse Drystan, paralisado no lugar. - Acha que ele está possuído?

- Pare com essas superstições ridículas! - retorquiu Dulce, ansiosa para sair logo dali. - Ele deveria ter acordado de um coma, apenas isso, ela pensou. - Não sabe que é comum um homem ser julgado morto, mas que assim mesmo, ainda lhe reste vida?

Drystan lançou um olhar apavorado na direção em que Rhys urrava no interior da cela, amaldiçoando a filha, cobrindo-a de impropérios e questionando sua paternidade.

- Não se preocupe, ele perdoará você - garantiu Dulce, ao fitar o pai. - É a mim que odiará para sempre.

Lançando mais um olhar cauteloso ao homem, que pareceu novamente inconsciente, Drystan ergueu-o depressa, segurando-o por sobre o ombro e não demorou a levá-lo pela escadaria de pedra.

Dulce virou-se para o pai, que parou de gritar.

- Sei que deseja que eu fique com o senhor e o ajude no seu trabalho, porém não consigo mais fazer isso. Eu me sinto tão infeliz e solitária, que comecei a desejar a morte. Apenas a imagem do senhor me abrindo inteira com seus instrumentos para ver como sou por dentro me impediu muitas vezes de tirar minha própria vida. - Esforçou-se para se lembrar de como o pai costumava ser antes de seu irmão ter adoecido e morrido, dia em que achava que a sanidade de Rhys morrera também. - Nunca mais voltarei aqui. Nunca mais tornarei a vê-lo. Tem algo a me dizer antes que eu vá?

Rhys apertou as barras de ferro com tanta força que os nós dos dedos ficaram esbranquiçados.

- Pode me deixar aqui com esses ratos, mas você nunca encontrará uma vida melhor. Nunca! Ninguém vai querê-la, feia como é e com essa marca que tem. Onde quer que vá, as pessoas sentirão repulsa ao vê-la. É uma mulher hedionda e seu coração é tão feio quanto seu rosto.

- Adeus, papai - disse Dulce num tom calmo. Seus lábios tremeram, mas ela não chorou. Perdera a conta das vezes em que o pai a chamara de feia. - Providenciarei para que seja solto dentro de um dia. Até lá os ratos terão muito com que se entreter.

Enfim, virou-se na direção da escada, tentando não ouvi-lo gritar que ela jamais encontraria um homem que a amasse. Que homem algum, nem mesmo um moribundo tirado de uma cripta seria capaz de ver além de seu rosto horrível.

A provocação final chegou até ela no alto da escada e Dulce soube que jamais a esqueceria.

- Salvá-lo não vai fazer com que ele a ame.

Segredos Obscuros - AdaptaçãoWhere stories live. Discover now