Capítulo I

40 10 107
                                    


Eram dois, veio o terceiro e um sobrou. Tal aritmética simples desencadeou temporais em lugares pacatos. Eram pessoas comumente diferentes, tanto quanto podiam ser. Vidas simplórias, até que o destino resolveu armar. Não há cristão no mundo que o Inimigo se refreie de atentar.

Viver o presente. Ah! Puro eufemismo para a falta de algo que não me vêm no momento. Puro capricho pagão. Comecemos pelos dois então:

Augusto e Carmelita!

Uns tantos míseros meses de um contato acentuado bastaram para que houvesse entre eles mais do que deveria, e bem menos do que aparentava. Uns tantos poucos meses de sorrisos, flores, passeios noturnos, mensagens subliminares em frases bem elaboradas.

Tinha começado na loja de discos. Era um casarão já desbotado pelo tempo – de tão velho, o branco era de um amarelo sem vida – com três batentes de mármore na entrada, decorada com dois vasos de comigo-ninguém-pode. O Diabo também estava lá, espreitando até uma hora conveniente. Não foi assim com Jesus? Perdoem-me os cristãos se estou errado.

Carmelita estava de vestido bordado à mão, com estampas floridas, e detalhes em formas espirais. Uma delicada presilha de borboleta enfeitava ternamente seu cabelo ondulado e dourado. Um leve aroma de alfazema emanava de sua pele alva. Seus olhos verdes claros vagavam pelos discos de Elvis Presley e Frank Sinatra. Indecisa, pegou os dois e dirigiu-se ao balcão. O que, por maldita coincidência ela não tinha se dado conta, é que faltava dinheiro para ambos. Aí que entra nessa história o nosso Judas incompreendido.

Logo atrás dela estava um jovem rapaz, desses coitados que acham que podem mudar o mundo. Tal de Augusto, novo naquela cidade, velho naquela loja de vinis. Trazia um rosto magro e pálido com uma barba mal feita, portando longos cabelos negros, repudiados e maltratados pelo vento. Vestia uma jaqueta de couro marrom, surrada como um pano de chão, e uma boca de sino nova e azul, contrastando com seu visual acabado. Trazia quatro discos. Dois eram de Les Paul & Mary Ford, um de Robert Johnson, e ainda outro de uma banda britânica que dominava o cenário vigente, The Rolling Stones. Nosso Judas, digo, Augusto, parecia sempre ter pressa, embora compromisso não era o que tinha.

Observando que a senhorita a sua frente ainda tentava multiplicar as cédulas inexistentes, ocorreu-lhe que poderia ajudá-la, fazer uma boa ação. Quem sabe Deus não entenderia e o mandaria para o céu depois de tantas, não é?

Tirou do bolso a quantia para pagar pelos seus e pelos discos desejados por aquela moça de ar leve e solto.

— Não precisa pagar de volta. Faz de conta que é um presente. – E sorriu, um sorriso de quem não estava acostumado a sorrir.

— Mas...

— Por favor, faço questão! — E tomou caminho para a rua.

— Mas nem sei seu nome para agradecer!

Tarde demais. Como a poeira no meio da ventania, Augusto já tinha sumido. Almas boas nunca ficam tempo o bastante...

Virando-se de volta para o caixa, Carmelita perguntou:

— Cadu? Quem é aquele moço?

Cadu, ou Carlos Eduardo, o sonolento e preguiçoso caixa, estava com a cabeça rechonchuda repousando no bagunçado balcão quando respondeu.

— Que? Ah! É Augusto. Ele chegou tá com um mês. Toda quinta vem aqui por essas horas.

— Obrigado. — E se dirigiu para a saída, pensando na próxima quinta-feira.

Passaram-se os dias e a tal da quinta não chegava. Augusto tentou arrumar um trabalho, mas nenhum canto quis rapaz tão prestativo. Chegou até no comércio de Seu Zé Bonifácio, pai da menina em questão, mas Seu Zé recusou o moço, dizia que já tinha funcionário demais. Coitado! O mundo não era o que ele achou que fosse quando decidiu ir embora da fazenda de sua mãe, Dona Joana. Já tinha gasto metade do dinheiro de suas economias e, em um mês, nada de trabalho.

Para completar o infortúnio, sua vitrola deu o prego. Foi o que escolheu como herança de seu pai, finado Cel. Alberto. Tinha que ter conserto e, de fato, tinha, só faltava quem fizesse o minucioso serviço. Ê diacho, estava difícil. Recebeu então uma carta de Dona Joana.

"Serrota, 10/03/1971

Querido filho,

Sinto muito sua falta, mas não quero pôr-lhe peso ao coração que já carrega imenso fardo. As coisas estão boas, mas aqui vão algumas novidades. Estou indo morar na Serrota e sua irmã não vem. Está indo morar com você. Espero que saiba ser responsável por você e por ela. Anita chega aí na próxima semana. Seu velho amigo, Inácio Teixeira, chegou da Argentina e disse que irá visitá-lo em breve. Quanto ao caçulinha, ainda pergunta quando você volta. Disse a ele que será no natal, e não me faça contrariá-lo.

De resto está tudo nos conformes. A fazenda vai bem. Mas cá entre nós, estou pensando em vender. A falta de teu pai e a tua partida deixaram um vazio muito grande. Espero que entenda e que me responda logo!

Beijos e cuidado!

De sua mãe,

Joana!"

Imaginem se ela quisesse pôr peso ao infeliz Augusto. Seu consolo passou a ser com mais afinco sua guitarra, uma Gibson 54, dourada, presente de seu tio Apolinário, um velho luthier que morava na capital. De boa notícia na carta, a única que Augusto leu com gosto foi a possível visita de seu amigo, há muito afastado, Inácio, que vem a ser nosso terceiro protagonista, mocinho ou antagonista. Cabe ao leitor interpretá-lo como quiser.

Inácio cresceu junto com Augusto, eram amigos de infância. Mas, como todo mundo uma hora tem de crescer, com ele não foi diferente. Quando era moleque dizia que ia bater pernas pelo mundo afora. Dois anos antes da passagem de nossos eventos, Inácio foi para o sul de mala e cuia, se fixando na Argentina. Se deu bem por lá, sabe-se Deus como, e agora tinha voltado, bem aparentado, formoso, com o cabelo curto e cheio de gel, chega brilhava, bigode ralo, e sorriso maroto. Vez ou outra se metia a andar dentro de um terno. Gostava de impressionar. No começo da adolescência, cogitou até em se casar com a filha de Dona Joana, Anita, coisa que Augusto não digeria muito bem. Mas, o tempo passou, e já vamos enxertar Inácio na história. Antes, porém, vamos prosseguir.

Se para Augusto a situação tomava um rumo inesperado, para Carmelita a coisa ia de vento em popa. Os planos já estavam tecidos. Faculdade na capital, trabalho por lá, família por lá, e morrer por lá. Odiava a mesmice daquela cidadezinha, com exceção da quase falida loja de vinis. Vivia encantada com as novidades do cenário musical em torno do mundo que existia em constante metamorfose, do blues ao rock. Sendo filha única, tinha tudo que desejava, o que não era em demasia, dada a limitação daquela cidade. Morava com os pais, em cima da loja, e passava a maior parte do tempo em seu quarto, viajando nas músicas que tanto amava e estudando os extensos livros de medicina de sua mãe, Dona Amélia, a única médica capacitada em cirurgias daquela região.

Já tendo enrolado o suficiente, vou lhes dizer sem mais delongas como sucedeu aquela quinta, já quase esquecida por nós, pela qual Carmelita esperava, mas tentava não pensar.

Caso Sinta FrioOnde histórias criam vida. Descubra agora