Capítulo IV

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A quilômetros e mais alguns de distância, se encontrava o bem-apessoado Inácio, deitado no alpendre da casa de seu pai, Fabiano, um dos empregados mais fiéis de Dona Joana. Desde que tinha voltado da sua viagem pela América, só se levantava da rede para comer, ou para passear pelos arredores da fazenda com um leve ar de superioridade, engrandecendo suas infinitas histórias, cheias de infortúnios e superações, metade delas inventadas.

Seu pai, Fabiano, reclamava.

— Te levanta dessa rede e vêm me ajudar.

— Fabiano, deixa de ser indelicado, deixa Inácio recuperar as forças. — Falava Dona Das Dores, mãe e defensora do filho.

— Isso, continua defendendo! Não é porque veio de outro canto que agora fica de regalia não. Filho meu tem que ser responsável. Passa o dia deitado, e quando sai é só para contar vantagem no meio dos abestados...

— Homem, deixa de ser turro. Vai fazer tuas coisas, quando meu filhinho estiver bem das forças vai te ajudar.

Não raro Seu Fabiano e Dona Das Dores voltavam a discutir por causa da folga de Inácio, que parecia nem se importar. Ficava escutando um disco dos Beatles, na vitrola que Dona Joana lhe deu em seu 15º aniversário. Permanecia parado, observando o tempo, relembrando as aventuras pelas quais tinha se metido. Algumas tinham sido por vontade própria e outras à força.

Quando saiu do Brasil, passou pelo Uruguai, onde ficara por três meses, trabalhando como garçom. Decorrido tempo suficiente para entender melhor o idioma, foi ao Paraguai, onde ficou por mais três meses, também como garçom. Cansado disso, foi então para a Argentina, onde morou por um ano e seis meses. Lá, além de garçom, também trabalhou como dançarino de tango. Isso lhe rendeu bem mais do que achou que conseguiria. Lhe deu algum dinheiro, mulheres e, vez ou outra, um marido ciumento querendo arrancar seus couros.

Em meio a tudo isso, curiosos fatos lhe ocorreram. O laço de companheirismo que tinha com Anita evoluiu para um afeto cheio de simpatia. Passaram a manter contato por meio de belas cartas, nas quais contava histórias bonitas sobre onde estava, e sobre si para ela. Apreciava impressionar a filha de Dona Joana, que lia e guardava cada carta com imenso carinho, em uma caixinha aveludada. Ambos mantinham um carinho mútuo, que poderia ou não evoluir para algo mais intenso.

Apesar da preguiça e das discussões com o velho pai, Inácio sorria ao estar presente com ele em cada jantar. Pedia a benção e acompanhava o pai, que costumava fumar no alpendre da pequena casa branca já amarelada pelo tempo inevitável e implacável.

Talvez o maior pecado de Inácio fosse o desejo excessivo por uma vida fora dali, fora dos moldes do pai tão bruto, de poucas palavras e muita seriedade. Inácio desejava aproveitar a vida, um dia de cada vez, uma aventura de cada vez, sem as preocupações de uma vida serviçal, sem o amanhã imprevisível, somente o agora, tendendo sempre ao exagero da luxúria.

Quem, por enquanto, não tinha nada a ver com isso era Carmelita. Tão alegre estava que seu pai desconfiou.

— Amélia, já notou que Carminha está muito cantante? Vive no mundo da lua agora. — Disse Seu Zé Bonifácio à sua esposa.

— Zé, tu nem imagina! Outro dia a vi escrevendo poemas. Acho que já sei do que se trata. — E deu uma gargalhada.

— Pois se for assim, que ela tire o cavalinho da chuva.

— Deixa a menina aproveitar um pouco a mocidade! Lembra da gente?

— Espero que isso não tire meu sossego. — Encerrou Seu Zé Bonifácio, sem fazer esforço para recordar do próprio passado.

Enquanto seus pais faziam tempestade em copo d'água, Carmelita estava em seu quarto, totalmente alheia ao que se passava fora de seu recinto. Se punha a escrever poemas horas a fio. Talvez toda menina apaixonada seja assim, e alguns meninos também. Mesmo negando, a paixão aflora, e com ela não era diferente. Desenhava pequenos corações, flores, cupidos com suas flechas do amor, e tudo que era romântico. Esperava viver algumas aventuras com Augusto, que parecia tão ousado, com seu estilo de garoto perdido de Woodstock. Queria correr perigos, ter momentos excitantes. Queria sentir a satisfação que não conseguia ter, embora tentasse.

Tudo a seu tempo e o tempo a seu curso. Domingo amanhecia brilhante. Diferentemente da quinta anterior, fazia um dia glorioso, com céu limpo e sol de verão, embora fosse outono. Pessoas tagarelavam nas esquinas e pássaros conversavam nas árvores. Seu Chiquinho passava vendendo pitombas, framboesas, jambos, e tudo que era difícil de encontrar. Os meninos faziam gritaria na fila para conseguir as especiarias tão cobiçadas. Na praça, meia-dúzia de famílias descansavam junto às sombras dos ipês e das mangueiras. Perto dali, no único lago da cidade, velhinhos pescavam com seus netos. Alguns moleques faziam disputas de saltos ornamentais, enquanto outros tentavam ver quem conseguia ficar mais tempo embaixo d'água. Ainda outros competiam na natação. Era um domingo típico daqueles não tão raros dias dourados!

Enquanto os moradores curtiam o domingo de folga, Augusto passou a manhã entretido na entediante leitura da apostila dos funcionários que trabalhavam no banco. A primeira semana seria de treinamento, mas, mesmo assim, ele queria impressionar, afinal, a primeira impressão é a que fica. Tão ocupado estava, que nem tinha se planejado para o encontro noturno com Carmelita. Com a cabeça focada no possível trabalho, seu lado não profissional adormeceu.

Porém, quando se lembrou, ficou mais nervoso do que já estava. Afinal, o que ele, um simplório moço do interior tinha a oferecer a uma Eva do Jardim do Éden? Em seus sonhos, Carmelita flutuava em vestidos do mais branco e puro linho, com as bordas douradas, detalhadas em fios de ouro. Era uma visão angelical!

Coincidentemente comendo uma maçã, Carmelita aproveitava o domingo no sítio de sua avó, a velha Dona Edith. Costumava ir com sua mãe todos os fins de semana até aquele local, cerca de duas léguas da cidade. Funcionava como um refúgio. Podia tomar banho despida no olho d'água da propriedade e nadar nos pequenos riachos, longe da vista de alguém, obviamente. Enchia o estômago com as inúmeras jabuticabas dali provenientes. Apreciava subir em alguma pedra, e se deleitar com a vista. Gostava de ir até um trecho na beirada da chapada que tinha por lá, onde residia há muitas décadas um solitário pé de bôrdo japonês. Ficava sentada, escorada no tronco, admirando a criação e imaginando aventuras, como sempre fazia ao se perder em seu mar de devaneios.

Sempre montava num potro de três anos, manga-larga, selado exclusivamente para ela por ordem de sua avó, e galopava por todas as extremidades do sítio. Cavalgava até doer as ancas. Todo domingo a diversão era garantida. Contudo, especificamente nesse, seria ainda melhor. Ela mal via a hora de chegar o cair da noite e rever o moço da loja de discos. Iam ao pequeno cinema. Para ela o filme não importava, afinal, não foi com esse intuito que a própria marcou tal encontro noturno!

Após os passeios no sítio, voltou para a casa de sua avó, para sentar e ouvir as histórias que Dona Edith sempre contava. Carmelita amava estar perto de sua avó, que sempre a apoiava em seguir o sonho do próprio coração, sem a interferência dos outros. Apesar disso, Carmelita queria impressionar a mãe, quem sabe se tornando uma médica tão capacitada quanto ela. Tão logo o repouso do almoço e das estórias findou, Carmelita e sua mãe voltaram para o centro urbano. Mal sabia Dona Amélia as razões da pressa de Carmelita em voltar para casa.

Caso Sinta FrioOnde histórias criam vida. Descubra agora