Capítulo V

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Num domingo diferente, perdida em seus pensamentos, Anita se encontrava na pensão. Seu dia estava incrivelmente entediante. Teria chamado Augusto para passear, mas o irmão não queria ser incomodado. Pensou em mil e uma opções, mas nem uma lhe agradou o suficiente para fazê-la levantar de sua cama.

Não via a hora de amanhecer o dia seguinte e ir atrás de seu sonhado emprego em uma das duas escolas daquela cidade. Tinha a experiência de ensinar as crianças da Saudade. Na certa, isso valeria de algo ao tentar se iniciar no ofício desejado.

Resolveu descer de seu quarto. Tinha que fazer algo para passar o tempo. Procurou Isabela para convidá-la a um passeio. A menininha funcionaria mais como guia turística. Ao final das contas, ou melhor dizendo, do passeio, Anita iria pagar um sorvete a pequenina. Sucedeu-se assim como ela planejou.

Isabela mostrou o Museu, pequeno, de paredes brancas e portas azuis, onde estavam guardadas as espadas de um líder revolucionário da época em que o tataravô de Anita era vivo. Depois, ambas andaram até o Santuário, que dava um ar histórico àquela cidade não pequena nem grande. Anita quase ficou impressionada com a arquitetura daquele edifício, ríspido, sério e frio. Isabela falou que há décadas aquela construção também servia como escola. Anita disfarçava, mas estava encantada com aquilo tudo.

Tendo passeado mais que suficiente, foram à praça e comeram pipoca, algodão doce, pastéis. Ao final do passeio, Anita não tinha mais espaço em sua barriga nem para o sorvete, mas mesmo assim comprou. Era de morango com baunilha e flocos, o favorito de Augusto. Ela sabia que ele ia amar aquela iguaria. Quem sabe tal gracejo não amolecesse o coração de Augusto com respeito às discussões sobre as cartas entre ela e Inácio!

Quanto a Inácio, continuava com sua interminável folga, a não ser quando Dona Joana o convocava para algum serviço. Ia de bom grado, mesmo com os resmungos do pai. Ainda assim, pensava que para um rapaz que morou no estrangeiro, voltar a trabalhar ali era um regresso. Depois de ter vivenciado algo que ninguém ali viveu, tudo o que ele queria era continuar vivendo as aventuras inesquecíveis, apesar do perigo que corria em algumas delas.

Continuou sem ligar para as reclamações de seu pai. Era mais apegado a Dona Das Dores, talvez pela inocência dela, mas ainda tinha uma admiração contida pelo velho pai. Até separou parte de suas economias de tango e deu para a mãe tão cândida, juntamente com mais alguns mimos. Por ser filho único, tinha todo o carinho e atenção que sua mãe podia lhe proporcionar e, por ser afilhado de Dona Joana, nunca passou necessidade. Teve o que a maioria dos jovens não teve. Educação, saúde, e praticamente todos os subsídios necessários para uma vida sem dificuldades. Viveu como um irmão ao lado de Augusto, dividindo os mesmos brinquedos e as mesmas brincadeiras e travessuras.

Era nostálgico relembrar da infância. Tudo havia mudado drasticamente desde a morte de Cel. Alberto. O velho coronel impunha um respeito por toda aquela vastidão do cerrado, porém, seu legado estava nas mãos de pessoas diferentes. Dona Joana era ainda mais competente na gestão da fazenda, mas o respeito que tinham por ela não era o mesmo. Apesar de saber dos comentários depreciativos sobre seu estado de viuvez, ela se mantinha sempre altiva, gerindo e cuidando de cada setor da fazenda, zelando pelos moradores e por tudo que estava em suas mãos.

A fazenda se mantinha nostálgica para quem lá estava. Já eram poucas as crianças a correrem pelo cerrado, caçando avoantes com suas baladeiras. Embora a produção de queijo, leite e manteiga estivesse a um bom nível, um ar estranho pairava por ali, trazendo certa lugubridade acentuada pelo canto dos acauãs. Talvez fosse a partida de Cel. Alberto, talvez fosse a falta da correria juvenil, talvez fosse a demora pelas chuvas que ainda tardavam. Faltava o verde, o verde da esperança que traz mudança, que renova a fé do incrédulo e dá vida ao moribundo. O verde, penso eu, é a vida em sua essência. Do verde vem a flor, da flor vem o fruto, do fruto vem a bonança que preenche a alma. Por fim, a alma agradece aos céus pela renovação desse lindo jeito de viver.

Talvez pelo fato de começar a trabalhar no dia seguinte ou por querer impressionar Carmelita, Augusto decidiu adotar um novo visual. Guardou as roupas que o faziam parecer um hippie e se preparou ao melhor estilo Clint Eastwood. Faltou apenas o palito no canto da boca e um chapéu. Aparou a barba, que era mal feita, diminuiu com tristeza os cabelos altos e ondulados, passando intermináveis camadas de gel. Vestiu uma camisa social bege, de mangas curtas, e uma calça risca de giz. Estava tão pronto para fazer um filme quanto para o dia que iniciava. Totalmente apresentável, perfumou-se como dava, até dizer "chega". Procurou Anita para avisar que estava saindo, mas, ao não lhe encontrar, resolveu sair logo.

Tinham combinado de se encontrar às dezenove horas, na praça. Às dezoito e trinta Augusto já estava esperando Carmelita. Viu alguns lírios, umas dálias, outras margaridas, e resolveu fazer um buquê. Imaginou que Carmelita iria colocar uma das flores em seus lindos cachos de ouro, ou talvez prender na roupa. Ele queria agradar, mas não sabia como, então ficava se lembrando dos conselhos que seu pai lhe dera sobre mulheres enquanto vivo.

— Filho, mulher é difícil de entender. Nem sei como casei com tua mãe. Absolutamente tive sorte, muita sorte. — Matutava o Coronel Alberto, quando entendia de sentar na velha varanda do casarão para aconselhar Augusto.

— Que direi eu, meu pai, que nem sei como falar com uma! Sou muito tímido nisso.

— Ah! Eu não nasci sabendo de nada, mas a vida me ensinou. Penei pra conseguir atenção de tua mãe. Pense como foi complicado! Mas consegui. Ela sempre estava acompanhada dos irmãos, sempre sorridente. Era como se fosse uma imperatriz, de semblante forte, sorriso encantador, cercada pelos seus súditos. Eu era, de longe, o mais fiel e secreto. Mal conseguia olhar sem sorrir.

— E como o senhor venceu a timidez?

— Eu estava voltando para a fazenda e vi ela sentada em um dos bancos que ficam na pracinha, perto do oratório. Olhei para ela e sorri. Passei longe para que ela não visse que eu tremia. Porém, ela foi até onde eu estava. Tinha que entregar uns papéis para sua avó. Então fomos andando juntos, dividindo piadas e brincadeiras. No fim, nos tornamos melhores amigos e, como amigos, começamos a namorar e construir isso tudo que temos hoje, Anita, você e o Miguel.

— Ah, eu não sei. E se eu ficar que nem o Seu Chicuto?

— Ficar mudo? — Alberto gargalhou. — Bem, se ficar mudo, dá alguma coisa pra moça. Tem coisa que em alguns momentos é melhor que palavra! Flores sempre funcionam. E eu sei que você gosta de escrever, ler, tocar. Faz algo pra moça. Aproveita, arrisca, vive. Meu filho, sua vida pertence exclusivamente a você!

— Espero ter sua coragem, pai.

— Você já tem, meu filho. Nunca se menospreze ou se compare. Um último conselho: sempre seja respeitoso com todos, mas, acima de tudo, com quem você ama. Busque ser a sua melhor versão a cada dia que passa. — Seu pai conseguia ser suave e sereno, mesmo em assuntos sérios.

Ê, diacho! Recordar de tais momentos ainda doía. E como doía. Augusto nunca tivera um amigo tão achegado quanto seu pai, nem mesmo Inácio. Aprendeu tudo que sabia na vida com ele, mas, agora, não podia demonstrar nostalgia. Ainda assim, essas lembranças o davam certa confiança para o que viria a seguir. Tinha que focar no encontro. Tinha que sorrir, que se divertir e divertir a garota.

Caso Sinta FrioOnde histórias criam vida. Descubra agora