Capítulo 2

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RAQUEL

DOIS ANOS ANTES

Ela estava comendo lixo.

Meus pés se fincaram no chão feito uma âncora ao ver a cena. Metade do corpinho estava mergulhado em uma lixeira coral e eu só soube que era uma menina por conta da saia rosa com borboletas desbotadas. A borda de plástico a pressionava no estômago e a pobre criança estava na ponta dos pés, no equilibrismo para alcançar algo que consumia lá dentro em uma mastigação afoita e sonora.

Levei a mão ao coração, na esperança de aplacar o aperto que se formava no meu peito, e me aproximei devagar. Atrás da menina com a infância roubada havia um mar de lixo. Era tão gigantesco quanto um mar aberto, como se as montanhas de sacolas plásticas fossem ondas. As ondas que estavam afogando a dignidade de uma criança a poucos metros de mim.

Dei passos vacilantes na direção dela, ainda sem saber como agir. Ela tinha pais? Estava perdida? Morava ali? Como eu poderia ajudar sem chorar? De perto, o barulho dela mastigando era ainda pior. Puxei a respiração e o cheiro do chorume ardeu minhas narinas.

Eu odiava ter que dar razão a Andrew. Talvez eu fosse mesmo humana demais para enfrentar algo assim. Quando vi a lista de trabalhos voluntários anuais na sala dos professores, meu coração apertou por ninguém ter se habilitado a vir até esse lugar. Agora eu começava a entender o porquê.

— Lá é barra pesada, Raquel. Não é um ambiente para você.

Eu odiava a forma como Andrew me via. Era como se eu fosse uma caixa de taças com um adesivo ao meu redor escrito "Cuidado, frágil". Como a maioria das pessoas, ele achava que o acontecido havia selado o meu destino e me transformado em uma boneca de vidro. Era cada dia mais exaustivo ter que provar o óbvio: continuar de pé depois de ter levado a maior rasteira da vida deveria ser sinal suficiente de força.

Eu não conseguia entender por que Andrew tinha sido o único homem a despertar algum interesse em mim quando voltei a me "abrir para a vida", como minha mãe gostava de dizer. Depois de anos chafurdando na dor, eu fui me interessar logo por um colega de trabalho que sempre fez questão de me tratar como uma irmã mais nova apesar das nossas idades semelhantes. E pior: eu nunca tive coragem de tomar uma atitude para mudar isso. Mas ser a única professora do colégio com iniciativa para fazer o trabalho voluntário no aterro sanitário poderia ser o meu grito de misericórdia. Seria unir o útil ao agradável, já que eu sempre amei alfabetizar crianças. Além do mais, ia elevar o nome do colégio com o voluntariado e provar que eu era corajosa. Veja só, Andrew, eu também sei ser fodona. Lide com isso.

Mas não, é claro que não seria tão fácil assim. A cena diante de mim acabava de provar isso. Eu estava a centímetros de uma garotinha comendo lixo e prestes a fazer xixi nas calças de tanto nervoso ao ouvi-la mastigar feito um bicho dentro da lixeira. Só peça para ela parar, Raquel, pelo amor de Deus.

Quando estendi a mão para tocá-la, a garotinha tirou o corpo da lixeira, com um movimento súbito. Dei um pulo e contive um grito. Ela sorriu quando nossos olhares se encontraram. Por incrível que pareça, eu estava diante da criança mais adorável que eu já tinha visto na vida. Eu poderia jurar que ela era uma versão sem banho da Boo, de Monstros S.A. Seus dentes estavam muito amarelos, mas ainda assim o sorriso era esplendoroso, com uma janelinha em cima. O rosto estava marcado por restos de chocolate, denunciando, enfim, o que ela devorava dentro da lixeira.

Abri a boca para dizer algo, mesmo sem saber o que eu deveria falar, mas uma voz crescente à direita me interrompeu.

— Eu te falei que não era para você sair de perto de mim. Quantas vezes eu tenho que te dizer que não é para se enfiar nessa lixeira? — uma senhora corpulenta pegou a garotinha nos braços com uma rapidez impressionante antes de me olhar com raiva. — E você quem é? — ela quase rosnou para mim ao perguntar.

Coração Influencer [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora