Capítulo 4

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RAQUEL

Faltava um dia para o voo de Lorelay e havia pelo menos trinta chamadas perdidas dela no meu celular. Eu não queria responder se aceitava a ideia maluca de fingir ser ela, não antes de visitar minhas crianças no aterro sanitário. Talvez Isolda tivesse algum conselho sábio para me dar, como ela sempre fazia enquanto tomávamos café da tarde depois que minha aula gratuita para os pequenos terminava.

Estacionei minha Doblô na rua próxima à entrada do aterro. Eu poderia ter um carro mais prático, mas o modelo era perfeito para comportar todas as criaturinhas. Depois de dois anos fazendo passeios com as crianças nele, havia marcas nos bancos de todos os tipos: giz de cera, achocolatado, hidrocor, vômito. Por mais que eu fosse fissurada em limpeza e organização, já tinha aceitado que nem a lavagem a seco conseguiria apagar certos rastros permanentes. Mas tudo valia a pena quando eu via a alegria das crianças conhecendo lugares históricos do Rio de Janeiro, aprendendo enquanto se divertiam, fazendo comentários hilários que coloriam a minha vida. Elas eram incríveis.

— Isolda? — chamei e bati na porta da casa.

A porta de entrada não era mais de geladeira. As janelas também não eram mais de galões de tinta. Desde que coloquei os pés no aterro pela primeira vez, organizei uma campanha de voluntariado no colégio chamada "Ganhe um amigo", pedindo uma contribuição simbólica aos pais dos alunos e funcionários. Na época eu era só uma professora novata do Colégio Santa Teresa, e o apoio do Andrew para convencer a diretora Mirna a deixar que eu fizesse o pedido foi de grande ajuda. Se alguém dissesse que aquela senhora rabugenta ia cair nas minhas graças e me chamar para ser sócia do colégio dois anos depois, eu jamais acreditaria. Acho que o meu afinco no trabalho do aterro a comoveu no fim das contas.

Ouvi o arrastar dos pés de Isolda e a porta de alumínio à minha frente foi destrancada por dentro.

— Olá, minha filha — ela abriu os braços e sorriu.

Aceitei seu abraço e o cheirinho de café no fogo invadiu meu nariz.

— Cheguei na hora certa — deixei minha bolsa sobre a mesa de madeira.

O móvel tinha sido feito por João, o pai marceneiro de um dos meus alunos do colégio. O bom homem fez várias mobílias simples para cada uma das onze casinhas ao redor do aterro sanitário. João também ajudou a construir a salinha de madeira que deu fim às minhas aulas embaixo da árvore, que aconteciam com um quadro improvisado pendurado no tronco e as crianças sentadas em toalhas no chão. A mulher dele, Rosa, trabalhava na prefeitura e foi graças a um pedido dela que o mar de lixo passou a ser jogado para mais longe dos barracos, amenizando o fedor insuportável de chorume.

— O café está fresquinho, acabei de passar.

Observei o líquido marrom sair da leiteira surrada e cair no copo que um dia foi um pote de requeijão. Sorri. Isso não tinha mudado.

— Preciso falar com você sobre uma coisa — eu disse.

Ela secou as mãos no pano de prato na cintura e me olhou com o cenho franzido. Isolda tinha no máximo 60 anos, mas aparentava ter 70 com seus cabelos grisalhos e a pele castigada pelas rugas.

— O que há, minha menina? Conheço essa carinha.

Isolda era do time da diretora Mirna. Os baldes de doçura que despejava sobre mim em nada lembravam a tensão do nosso primeiro contato. Meu pai insistia em me convencer de que eu era bonita, dizendo que pessoas bonitas tendiam a causar desconfiança em um primeiro momento. Mas se elas forem bonitas por dentro, dizia ele, as pessoas dão mais uma chance e se apaixonam de vez. Papai sempre foi a melhor pessoa para elevar a nossa autoestima com suas teorias malucas. Ele dizia aos quatro ventos que suas filhas eram mais lindas que a Afrodite, como se a deusa grega tivesse sido sua colega de quarto.

Coração Influencer [DEGUSTAÇÃO]Where stories live. Discover now