Capítulo 8

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Eu deveria ter passado no aterro sanitário para me despedir de July e Isolda, mas estava tão péssima que só ia deixar as duas preocupadas se me vissem com o rosto inchado por ter chorado no carro o trajeto inteiro. Tudo que consegui fazer quando saí do colégio foi buscar minha mala em casa (eu não ia usar as alegorias que Lorelay chamava de roupas) e pegar um táxi para o flat da minha irmã em Copacabana, a minha nova casa nos próximos três meses.

Depois de entrar e me acomodar no espaço que não tinha nada a ver com o meu lar, fui até o confortável estúdio de gravação de Lorelay e passei o restante da tarde marcando médicos para Isolda. Fiquei uma hora com ela no telefone, primeiro explicando que eu havia aceitado a proposta de Lorelay e depois tentando convencê-la a ir às consultas, mesmo sob seus argumentos de que não queria que eu gastasse meu dinheiro. Ouvir a vozinha triste de July no telefone perguntando se eu estava a abandonando foi o golpe derradeiro.

— Isso nunca vai acontecer, princesa. É que fadas também tiram férias. Mas eu vou te ligar sempre. Qualquer coisa que você precisar na escola, fale com o tio Andrew, tá bom?

Meu coração estava do tamanho de uma ervilha quando desliguei. Eu já não tinha certeza se podia contar com Andrew, não depois daquilo, mas eu não tinha alternativa. Ele gostava de mães peitudas. Será que era esse o meu problema?

Comi mais uma colherada do sorvete que encontrei na geladeira da minha irmã, mas não estava ajudando. O negócio era sem glúten, sem lactose e sem gosto. Guardei o pote de volta na geladeira, me recostei no sofá de couro bege e encontrei um botão sem querer. Olhei com desconfiança para tamanha tecnologia em um móvel que deveria ser normal, mas decidi apertar. Com um barulhinho, o sofá lentamente foi se inclinando para trás e se transformou em uma cama relaxante. Ora bolas, até que a vida de Lorelay não era de todo mau.

Deixei meu corpo relaxar pela primeira vez no dia e repassei na mente pela milésima vez a cena de Andrew com a mãe da aluna na sala dos professores. Para a minha humilhação completa, lágrimas voltaram a inundar meus olhos. Como uma professora que se preze, eu sabia o significado desse choro: rejeição. Eu não amava Andrew nem era apaixonada por ele. Na verdade, eu tinha dúvidas se um dia conseguiria me apaixonar por um homem de novo. No fundo, eu só queria que ele me desejasse, pois eu estava pronta para isso depois de um longo e tenebroso inverno. E nenhum homem além dele havia me interessado, o que tornava tudo mais difícil.

Durante os últimos anos, tudo que eu fazia era tentar provar a Andrew que a ideia dele ao meu respeito estava errada. E, no final, quem estava fazendo uma ideia errada de quem? Eu, que me deixei levar pela pose de bom moço e idealizei que talvez aquele homem pudesse ser o meu recomeço no dia em que decidisse me enxergar com outros olhos.

Na última festa de fim de ano do colégio, Andrew havia se oferecido para me levar até em casa. A lua estava esplendorosa e eu juro que tinha um clima diferente quando paramos em frente aos degraus do meu portão. Quando ele estendeu a mão e passou o polegar na minha bochecha, eu achei que o momento havia chegado. Mas, como se tivesse se arrependido no último segundo, Andrew deu dois passos para trás e disse:

— Durma bem, Raquel.

Durma bem, Raquel? Ah, me poupe. Quando fechei a porta atrás de mim, eu queria chorar de frustração. Para conseguir encarar Andrew no dia seguinte e fingir que nada tinha acontecido naquela noite, eu me apeguei ao fato de que ele não investia em mim por causa da nossa relação de trabalho. Por isso seus sinais nunca eram claros, por isso ele me abraçava demorado em despedidas e fazia elogios sobre minha aparência, mas logo em seguida me tratava como se eu fosse sua irmã mais nova. Andrew era ético, foi o que eu disse para mim depois de tantos "quases".

Mas depois do que eu presenciei mais cedo, eu tive que deixar essa ideia partir da pior forma possível. A resposta era mais simples do que eu pensava: eu não era a mulher que ele desejava. Ele preferia se esfregar com a mãe de uma aluna na sala dos professores do que tocar em mim. Boa parte dessa culpa era minha por ter nutrido esperanças, mas também era dele. Às vezes o egoísmo das pessoas faz elas gostarem de te ver gravitando na órbita delas.

Apertei o botão e voltei o sofá para a posição normal. Sequei as lágrimas, respirei fundo e ajeitei a touca de cetim na cabeça. Não valia a pena ficar remoendo. Talvez esse tempo afastada fosse bom para eu analisar a minha própria vida com mais clareza, mesmo que isso não tivesse a menor lógica, já que eu estava fingindo ser outra pessoa. Como foi que minha vida havia virado de cabeça para baixo assim?

Desbloqueei a tela do telefone que Lorelay tinha me dado antes de ir, já com seu chip antigo do Brasil instalado. Havia uma mensagem do seu novo número internacional, respondendo a minha pergunta sobre seu paradeiro.

[Lore] Ainda não cheguei na Holanda, estou fazendo uma conexão.

Posta algum story!

[Eu] Ok. Sua assessoria não mandou a agenda de amanhã por e-mail.

Nenhuma resposta. Eu não fazia ideia de qual seria o compromisso do dia seguinte. Decidi obedecer ao seu pedido, mesmo a contragosto, e abri o Instagram de Lorelay, que já estava logado no celular. Pensar que agora eu era responsável por alimentar o tamagoshi vigiado por doze milhões de pessoas me deu arrepios.

Um frio na barriga me percorreu quando vi que a assessoria havia postado uma foto minha e que já tinha milhares de comentários. Era uma das fotos da sessão interminável que Lorelay me obrigou a fazer um dia antes. Eu estava com os cachos soltos e vestindo apenas um blazer, sem sutiã por baixo (depois de muita insistência dela). A legenda dizia "Nova fase da Lore. Gostaram?".

Não tive coragem de ler os comentários, eu não estava em condições de arriscar minha autoestima depois dos acontecimentos desastrosos do dia. Com os dedos trêmulos, passei para as bolinhas de vídeos em tempo real, que agora eu sabia se chamarem stories. O último registro do dia ali tinha sido um suco verde, às 10h. Lorelay devia ter postado antes de sair de casa para o aeroporto, nos seus últimos minutos sendo ela mesma. Depois vinham os vídeos que ela havia me obrigado a gravar sobre a nova parceria de moda praia. A assessoria havia postado depois de anunciar o novo visual com minha foto.

Era tão estranho me ver ali assim, exposta para uma quantidade de pessoas que encheriam um estado do Brasil, em uma conta que tinha o nome dela. Para piorar, eu ainda tinha que postar mais alguma coisa nas malditas bolinhas àquela hora da noite. Já não estava de bom tamanho minha foto sem sutiã, o suco verde e a publicidade? O que mais essas pessoas queriam ver? Meu xixi?

Decidi ignorar o tamagoshi por mais um tempo. Fiz uma pipoca de micro-ondas que por sorte eu havia trazido na minha mala, acomodei melhor os meus cachos na touca de cetim e liguei a TV para ver o último episódio de "Zona de Perigo". Então dei pausa na cena de Kaleo Miller engolindo a boca da personagem Maria Alice. Tirei uma foto da cena e fiquei olhando para a tela do celular, pensando no que Lorelay escreveria. Digitei as palavras, apertei em publicar e me aconcheguei no sofá, me deliciando com a pipoca com glúten, com lactose e com gosto. Não sei a que horas peguei no sono, mas sonhei com Maria Alice. Ela estava me chamando de invejosa.

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Oi, amores. Estava viajando e não consegui levar o pc, desculpem essa semana sumida.

Vou postar mais um na sequência.

Bjs.

Coração Influencer [DEGUSTAÇÃO]Where stories live. Discover now