3a. Reclusão (Kunhã Rendy)

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Não que, se eu pudesse sair, eu sairia. Mas a questão é não poder sair. Isso de você ter que ficar dentro da casa grande, sem contato com o que acontece lá fora, me queima por dentro. Ainda há pouco, observava meu irmãozinho. Ele saiu correndo para fora e voltou ainda mais rápido para dentro, para perto do fogo. Ficou dando risada da empreitada. Tão pequeno! Só viveu três invernos ainda, eu acho. E a carinha sapeca dele encanta a todos.

Lembro-me bem, ainda, do dia que meu pai sonhou que ele chegaria. Ele não cabia em si de felicidade. Ninguém ainda desconfiava de nada, mas depois que ele contou o sonho, todo mundo começou a ver que a barriga de minha mãe realmente estava crescendo.

Lembro-me de meu pai sentado perto do fogo, coçando na perna algo que seria mais imaginário do que real e a outra mão com o arco em pé, ao lado do corpo, como que se apoiando nele. Ele contava o sonho e ria. Todos riam. Ele procurava sempre um detalhe novo, a cada vez que voltava a contar: a terra sagrada do céu, no cosmos do Nhande Járy, Nosso Dono, a forma e o momento em que ele chegou na maloca do Nosso Pai eterno, como Ele o recebeu.

— Quando cheguei perto na maloca do Nosso Pai eterno, sua casa grande – meu pai contou repetidas vezes –, avistei o grande pátio e a porta que dá para os lados do sol nascente. É claro que não tinha sol. – Ele sorriu, e os outros com ele, pois se lembrou que o nosso Dono é o próprio Sol. Mas era estranho narrar que a porta ficava para os lados do Sol nascente, quando este não nascia lá.

— Ao adentrar o pátio sagrado – meu pai continuava – Ele apareceu, saindo da porta principal. Brilhava com o brilho do Sol. Suas roupas, como as nossas, eram brancas. Estava com o ponxito e com a veste, que como uma saia, lhe dava nos joelhos. Usava o ku'akwaha, o cinto enfeitado. Colares de sementes e penas cruzavam o seu peito. Em uma das mãos, a Kurusu, a cruz original. E em sua cabeça, o seu lindo jegwaká.

Nesse ponto da sua repetida história, meu pai sempre se emocionava. Os homens entoavam uma exclamação em uníssimo, uma saudação a Nhande Járy, o Nosso Dono. Eu também me emociono quando ouço esta parte da narração e ao ver a reação dos homens e mulheres. Fico imaginando quão maravilhoso deve ser chegar ao patamar mais alto do Cosmo, no céu do Nhande Ryke'y, Nosso Irmão mais Velho, e ser recebido por ele.

— Atrás dele, vieram os seus avaetês – meu pai relembrava – Eles também estavam com vestes e ornamentos, como Nhande Ryke'y. Nas mãos, cada um estava com um baracá. Vieram ao meu encontro e me receberam com o canto e dança ritual de recepção.

Quando meu pai chegava a esse ponto da narrativa, novamente se ouvia a exclamação em uma só voz dos homens. Então ele parava por instantes. Estava sempre muito emocionado, respirava fundo. O ar precisava entrar novamente, se normalizar. Todos respeitavam esses momentos.

Quando finalmente ele se refazia, continuava:

— Depois da dança e canto ritual de recepção, Nhande Ryke'y me purificou com seus raios santos, atirando-os em mim. E acreditem, apesar da sensação de me queimar por inteiro, tudo não passou disso, nenhum fio de cabelo se queimou de verdade. – E eu pensava nessa purificação realizada por Nhande Járy e me maravilhava. – Ele me recebeu, trouxe um apyka'i – que é um banquinho simples, feito de um tronco de árvore –, colocou-o do lado de fora da casa grande e pediu que eu me assentasse. Trouxe também o seu próprio apyka'i marangatu, o banquinho sagrado, e se assentou. Então me ofereceu xixa, nossa bebida tradicional, feita a partir de milho da sua roça, que é eternamente produtiva.

Ao chegar nessa parte, além da entoação conjunta, os adultos também riam, se cumprimentavam, chegavam a bater palmas. Eu penso que este é o sonho de todos eles: um dia se assentarem com Nhande Ryke'y e tomar xixa com Ele.

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Where stories live. Discover now