Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆

4. Iniciação (Avá Verá)

Cansado, com fome e com frio. Resumindo, é assim que estou me sentindo. Só não sei dizer qual é o que está me incomodando mais. Andamos e corremos o dia todo, treinamos muito com arco e flechas e também com lança e tacape. Os músculos de meus braços doem e tremem de tensão. Não comemos nada o dia todo. Um dos meninos matou um pequeno macaco, mas não nos foi autorizado parar para prepará-lo e comer. Durante o dia todo, só ingerimos água e um pouco de mel. E, somente agora, com o sol já bem baixo, parece que os homens resolveram parar um pouco. Acho que a intenção é dormir aqui. Olhos para os outros três meninos iniciando. Todos estão como eu, cansados, com fome e frio.

Agora que paramos, percebo mais a floresta. Ela é magnífica! Posso ouvi-la e senti-la como se ela fosse parte de mim e eu dela. Seus sons, seus cheiros, sua umidade, sua suavidade e rudeza ao mesmo tempo soam em meus ouvidos e penetram em mim com toda intensidade e por todos os meus sentidos, no mesmo compasso de meu coração acelerado pelo cansaço. Ela perpassa todo o meu corpo e meu interior da mesma forma que o ar frio queima os meus membros e minhas vias respiratórias, no antagonismo do incômodo que me é essencial. Olho para as árvores e não consigo visualizar as copas. Elas são enormes. Os últimos raios solares já não conseguem penetrar muito mais, mas, ainda assim, o verde é intenso, nas infinitas tonalidades que meus olhos podem distinguir.

Sei que por aí está toda espécie de animais. Posso ver alguns, escutar outros e senti-los como uma continuação de mim. São micos-leões-dourados, orangotangos, macacos-aranha, onças-pintadas, capivaras, lontras, porcos do mato, pacas, tamanduás-bandeira, dentre outros, os animais que habitam essa região. Cruzamos com diversas espécies hoje. E também são inumeráveis as espécies de pássaros típicos dessas florestas tropicais: papagaios, cegonhas, araras, pica-paus, tucanos, pombos, pavões, mutuns-preto, garças. Também vimos muitos deles durante todo o dia. Só não tivemos permissão dos adultos para matar nenhum deles.

São cinco os homens adultos que estão com a gente esses dias, mas isso muda de quando em quando, para que os pais de família não se ausentem muito de casa, de suas mulheres e filhos. Já faz muito tempo que nós, os meninos, estamos acompanhando os adultos todos dias. Desde o último inverno. Me lembro que quando meu pai me disse que eu e outros meninos já devíamos acompanhar os homens adultos nas suas jornadas, estava terminando o inverno. E agora já é inverno de novo.

Estamos bem melhores e bem mais habilidosos para estar e lidar com as coisas da floresta do que quando começamos. Sabemos construir nossos próprios arcos e flechas, conhecemos que madeira e cipós usar, também sabemos dar os nós. Já conseguimos acertar com precisão alvos parados, andando, correndo e até voando. Ainda que pequenos ou que estejam bem distantes. Já conhecemos várias plantas com seus diferentes usos, seja na alimentação, ou como medicação. Também já distinguimos as plantas venenosas, e até aquelas que repelem insetos, ou que nos protegem dos raios solares.

Já nos é fácil andar na floresta, seguindo trilhas e caminhos. Sabemos a localização de muitos rios. E o mais importante, conhecemos os diferentes Járy (donos) de cada lugar, de cada espécie de animal, dos rios, sem o que não teríamos permissão para transitar pelo território e correríamos grandes e graves riscos. Já conhecemos e sabemos usar os diferentes cânticos de cada Járy, para pedir a permissão de atravessar os lugares, ou rios, ou para matar animais, aves ou peixes da região.

Nos últimos dias, o treinamento se intensificou. Não voltamos para casa já tem alguns sóis. Dormimos na mata, rezamos na mata e treinamos. Treinamos muito. Todos nós já sabemos cuidar do fogo para que ele não se apague durante as jornadas e então não tenhamos tanto trabalho para acendê-lo todos os dias. Já conhecemos sobre vários Járys e sua atuação no cosmos. Já reconhecemos muitos sinais da natureza. Mas sei que ainda há muito para aprender.