14a. Incêndio e luz (Avá Verá)

572 61 17
                                    

Eu nunca tinha visto nada assim e jamais imaginei ou pensei que algo assim poderia acontecer. Meus olhos ardem, a respiração não responde. Meu peito queima. A dimensão do incêndio é muito maior do poderia conceber. O calor, a fumaça, as cinzas queimando nos ares e em nosso corpo e em nossa respiração nos dão conta da extensão de tudo. Árvores estão sendo reduzidas a nada, a uma poeira preta. E as mortes. Provavelmente muitas mortes. De animais, com certeza, porque nenhum que esteja nos arredores tem como escapar, pois, ainda que eles consigam fugir para os rios, o calor é muito intenso e é muito difícil de respirar. Queima os pulmões. Mas também pode haver de seres humanos.

Que destruição, que pavor, que medo. Estamos chegando nas proximidades do território da nossa casa grande. Tudo destruído aqui, tudo queimado. E mais à frente, o fogo continua em seu rastro de destruição. E não temos, a princípio, como chegar em casa. Pelo menos não vivos, se insistirmos assim. A vontade é desabar no chão e deixar que o fogo faça o resto. Faça aquilo que ele veio para fazer. Mas não posso pensar assim. Temos que ser mais fortes, como jamais fomos. Disso depende a nossa sobrevivência e, principalmente, a sobrevivência de outros. E, esperamos, a sobrevivência de xe sy, xe rendy e Mitã'ĩ.

A visão que eu tive do protetor das matas em forma de onça, quando entrei em seu corpo e ele me fez ver o que estava acontecendo, me revelou, eu pensava, em tempo de voltar e salvar os meus. Assim, quando eu saí do transe ontem à noite depois da visão, suava muito e tremia. Foi necessário que xe ru me amparasse e me colocasse apoiado em uma árvore.

— O que foi, xe ra'y, o que você viu? – foi o que ele me perguntou.

— Um incêndio, papai! – Falei com voz embargada e trêmula. – Um enorme incêndio pelos lados da casa grande.

Meu corpo tremia, e eu estava assustado demais. Era a primeira vez que eu via pelos olhos de um protetor das florestas. E o que eu tinha visto me abalou demais. No entanto, consegui ver que meu pai se alterou, talvez, ainda mais que eu.

— Um incêndio, xe ra'y – ele disse, e agora era sua voz que falhava. – Um incêndio para os lados da nossa casa grande? Como assim?

— Sim, papai. – Repeti, agora com mais domínio de minha voz. – O senhor das matas me levou a uma colina alta. E eu vi a floresta queimando. Uma coluna de fumaça subia no céu. E eu ouvi um choro e clamor de animais morrendo.

— Já está acontecendo, ou é uma visão do futuro, filho? Você conseguiu ver isso? – pergunta meu pai.

— O sol estava nascendo, papai. Só isso que eu sei. Mas já estava queimando muito. Então... então, eu não sei. Não sei se já está acontecendo ou se ainda vai acontecer.

Na verdade, eu estava muito confuso com tudo. Ver com a visão de um animal ou ser espiritual pela primeira vez era estranho. Eu não consegui ter domínio da situação lá. E nem sei ainda se é possível ter domínio de situações assim. Então eu só me deixei levar. Me deixei levar pelo espírito da floresta, e vi o que ele me deixou ver. Mas de uma coisa eu soube no instante que saí do transe. A visão tinha sido me dada com um propósito. E eu sabia qual era. Tínhamos de voltar para nossa casa grande imediatamente.

— Temos que ir para lá. – Foi o que disse a xe ru em seguida.

— Mas como, meu filho? Se já estiver acontecendo, ou ainda se for nessa noite para madrugada de amanhã, não chegaremos a tempo. Estamos a um dia de lá. Ainda que saiamos daqui agora e corramos muito e com total habilidade no escuro, só chegaremos lá de madrugada.

— Temos que ir, papai. Eu não sei se o incêndio já está acontecendo ou se foi me dada uma visão de futuro. Mas temos que ir.

— Eu sei, filho. Vamos. Temos que sair o mais rapidamente possível.

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Where stories live. Discover now