Alguém com quem contar

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   Apesar de não terem feito pausas, já era quase fim de tarde quando finalmente terminaram de arrumar tudo, rendendo mais meia-horinha de espera enquanto Natalie terminava de esquentar a refeição dos dois, apresentando um prato impecável diante de Charlie.

   — Vouilá! — exclamou empolgada, e mesmo que ela não tivesse falado muito após aquela estranha cena com os retratos, o xerife não poderia dizer que no momento ela estava forçando sua simpatia.

   Disposto a também colaborar para a volta do bom humor, ele arriscara levar uma garfada à boca, feliz em ver que de fato a comida estava boa.

   — Nada mal. — acrescentou ao sorriso tímido que lhe lançara, digerindo o que comia com um pouco de água. — Pelo grau de delícia da comida, poderia facilmente dizer que você conseguiu me pagar pelas duas que deve! — ainda tentou lançar essa, embora piadas casuais não fossem lá o seu forte.

   Mesmo assim, ela riu e riu com gosto. Apesar de muito observador, Charlie nunca fora de ficar reparando em traços que o atraíssem. Mas, se fosse para apontar todos os detalhes no sorriso da doutora, ele o faria com gosto: os lábios rosados que se levantavam levemente para expor a fileira de dentes perfeitos; os vincos que suas covinhas provocavam em suas bochechas; o brilho nos olhos esmeraldinos...Oras, não queria admitir que estava encantado, mas também não era cego!

   Quando o riso se amenizou, se transformando num sorriso mais contido, ele pôde ver parte da sobriedade de mais cedo retornando ao seu olhar, embora ela ainda se esforçasse para se manter tranquila.

   — Você pode me perguntar sobre mais cedo, se quiser. É um assunto meio pessoal demais para tratar com alguém que acabo de conhecer, mas ao mesmo tempo me pergunto se não haveria coisa melhor do que tratar disso com alguém mais “imparcial”. — a forma como fora simplesmente direta o desconsertara, mas havia um certo charme em sua franqueza. No fim, se sentia feliz em ver que ela não fingiria que nada acontecera.

   — Bom — começou com um longo suspiro — O que houve? Aquela é a sua...família? — aproveitara para emendar o questionamento com uma pergunta ainda mais direta.

   — Sim, aquela é a minha família. Ou pelo menos era, até há alguns meses. — rira sem humor, fazendo uma pausa para recompor a seriedade. — Okay, eu acho que vou precisar de um pouco mais do que isso... — murmurara para si mesma, se levantando da cadeira para sumir pelo portal que dava às escadas do porão.

   Charlie não se permitiu emitir um único som até vê-la retornar com um álbum, folheando as fotos como se tentasse recordar em qual página gostaria de começar.

   — Aqui! — de repente exclamou, apontando para a folha enquanto depositava o livro diante de Charlie.

   Nela um casal de adolescentes sorria para a foto, segurando uma bebê nos braços. Não posavam ao acaso, e o grande letreiro de balões soletrando “Formandos 1986” ajudava a montar o contexto. O rapaz, mesmo com o cabelo engomado demais, parecia um astro de cinema, tal qual a menina, que tinha os cabelos loiro-morango armados numa nuvem de cachos.

   — Belo aparelho... — ele riu baixinho, ao notar uma das poucas diferenças mais óbvias, com exceção das marcas do tempo em seu belo rosto.

   — Sim, impressionante, não? — ela entrou na brincadeira, rindo também. — Sempre disseram que eu e ela temos o mesmo sorriso. Não foi surpresa que ela também tivesse precisado usar aparelho aos quinze. — comentou, apontando para a bebê de bochechas gorduchas que ela tinha nos braços na foto.

   — Tinha quinze nessa época?!

   — O quê? Não, claro que não. — apesar de não entender o porquê de seu choque soar cômico, era bom ver que ainda a divertia. — Eu e Eddie tínhamos dezoito: Nem muito cedo para escandalizar, nem muito tarde para não ter sido um grande equívoco da nossa parte. — concluiu sem jeito, passando uma mecha para trás da orelha. — O que é engraçado, porque eu e ele crescemos juntos, e nunca tivemos muita coragem de arriscar sair da “zona amizade”, até um breve encontro no drive-thru. Nove meses depois, a Faith nasceu.

   Charlie ouviu a tudo sem julgamentos, pois embora tivesse se assustado a princípio, gravidez na adolescência não era algo tão incomum em Forks. Ele próprio não tinha saído há muito de sua própria adolescência quando tivera Bella, só ganhando Natalie por dois anos de diferença entre tais eventos.

   — Quantos anos ela tem agora? — perguntou, pela primeira vez se questionando a idade da doutora. Não acreditava que ela fosse nova, mas algo na forma como as leves marcas em seu rosto pareciam ser muito discretas, o fez suspeitar de que talvez não fosse tão velha.

   — Ela tem dezenove, e eu tenho trinta e sete, antes que pergunte. — ela se apressou em fazer as contas, provavelmente fisgando a intenção por trás de sua pergunta. — Ela entrou na faculdade setembro passado, e eu e meu ex marido tínhamos marcado de iniciar o processo de divórcio naquele mesmo mês.

   — O motivo...?

   — Nada e tudo ao mesmo tempo. — Natalie dera de ombros, parecendo estranhamente em paz consigo mesma. — Entenda, como já havia dito, eu e Eddie passamos mais tempo de nossa juventude nos tratando como amigos, do que efetivamente sendo namorados. De qualquer jeito, não pareceu certo para nenhum de nós que aquela bebê nascesse num lar separado, e como nos gostávamos o bastante para fazer aquilo dar certo, nos casamos um mês após nossa formatura. — riu-se, folheando o álbum para a próxima foto.

   Nessa, a filha de Natalie parecia um pouco maior, com chiquinhas emoldurando seu rosto em formato de coração, tal qual a mãe. Elas também tinham o mesmo sorriso bochechudo, assim como o mesmo brilho nos olhos, mesmo que fossem de colorações distintas.

   — Os primeiros anos foram os mais difíceis, comigo e com Eddie passando os dias úteis no campus, enquanto visitávamos Faith nos fins de semana, na casa de meus pais. Me partia o coração vê-la chorando sempre que partíamos. — murmurou, folheando mais algumas fotos, onde uma Natalie sem o aparelho, mas com visíveis olheiras sorria forçadamente para a foto, abraçada com o marido. — Essa nós tiramos no nosso décimo aniversário, talvez? A única coisa que me lembro nessa foto é de que foi quando Edmund tivera coragem de me contar que estava tendo um caso. — ela declarou, mas não parecia haver rancor em sua face. — Não pude julgá-lo, na verdade, ainda não posso. Nem tivemos tempo de pensar se queríamos viver uma vida juntos antes de sermos forçados a isto, então...então a única coisa que lhe pedi foi que fosse discreto, pois enquanto Faith precisasse de nós, teríamos que continuar fazendo aquilo dar certo.

   — Você aturou os adultérios de seu marido por anos, apenas pela sua filha?! — Charlie concluiu, indignado de que ela tivesse se sujeitado aquilo.

   — Eu não sou nenhuma santa, Charlie. Bem é verdade que descobrir sobre a falta de Eddie me dera carta branca para fazer o mesmo, algumas vezes. — ela engoliu em seco, aproveitando para digerir um gole de seu copo d'água. — Não foi tão satisfatório quanto pensei, mas me ajudou a entendê-lo um pouco mais. No fim, precisaríamos acabar com aquilo, uma hora ou outra. Pareceu certo para nós alinhar a data do divórcio com o ingresso da Faith na universidade, mas ela não absorveu bem a notícia, quando a demos uma semana antes de sua partida. Para ela, sempre fomos tão felizes, tão apaixonados, que...que por um instante ela se perguntou se não teríamos mentido para ela esse tempo todo.

   — E de certa forma, mentiram.

   — Sim...quer dizer, não. Pelo menos não dessa maneira! Nós sempre a amamos! Só não parecia mais certo manter aquele casamento em prol de uma mulher que já estava crescida o bastante para não depender mais de nós. — apesar da suposta confiança nas palavras, foi dolorido ver o reflexo das lágrimas surgindo nos grandes olhos verdes. — Mas sim, não posso julgá-la por agora estar se questionando sobre toda a sua vida. Eu só queria que ela tivesse nos dado a chance de conversarmos...

   Por um momento, não pareceu haverem palavras que Natalie gostaria de falar, pelo menos não sem antes poder respirar fundo. Charlie também não a apressou, conseguindo compreender as motivações por trás do que ela fizera. As vezes pensava se ele e Renée não poderiam ter feito o mesmo por Bella, pelo menos durante os primeiros anos. Afinal, sua menininha mal havia aprendido a engatinhar quando as duas partiram para o Arizona, não retornando mais.

   Porém, se assim tivessem feito, Renée teria passado todos aqueles anos sendo infeliz em Forks, forçada a se diminuir em prol de uma paixão que não durara mais de um verão. Não parecia justo, e de fato, se havia sido o único a não superar o que acontecera entre ele, a ex e a filha, talvez ele fosse o único com pendências a tratar.

   — Eu também tenho uma filha, e também sou divorciado. — ele resolveu se pronunciar, após alguns segundos. — Para a sorte de nós dois, Renée teve coragem para correr atrás da própria felicidade. Não vou dizer que foi fácil para mim ter que me limitar a ver minha filha durante os verões, mas certamente foi o melhor para todos nós.

   — Ela tem quantos anos atualmente? — a doutora fungou, espantando uma lágrima solitária em seu olho.

   — Vinte, só um ano a frente da sua filha. Mas lamento em informar que não temos a mesma idade: acabo de me tornar um quarentão. — ele brincou, lhe lançando uma piscadela. Apesar das circunstâncias, ela conseguiu rir. — Nós também tínhamos pouco tempo juntos antes de nos casarmos. Nunca imaginei que ela fosse desejar uma outra vida, mas acabou que eu me enganei. Sinto muito por sua filha, mas levando em conta a minha, sei que ela irá sobreviver, ainda mais vindo de um processo de divórcio tão amistoso quanto o seu e de seu esposo.

   — Ah, então a sua sobreviveu? — ela repetiu o termo utilizado com dramaticidade. — E o que ela faz atualmente?

   — É casada e tem uma filha. Parece que a maçã não caiu muito longe da árvore, no fim das contas. — emendou com humor. — Mas ao contrário de mim, não sei se ela tomou esse rumo de forma...imprudente. Posso não gostar muito de Edward, mas também não posso dizer que ele não deixa faltar nada para minha filha e neta. Eu só não queria que ela tivesse de partir... — dera de ombros, dando seu relato por encerrado.

   O silêncio se fez presente nos minutos seguintes, mas por alguma razão foi mais tolerável. Podiam não ter gostado da experiência de se abrirem daquela forma, mas pelo menos não pareciam insatisfeitos por terem feito aquilo um com o outro.

   — Descobrimos que temos bem mais em comum do que imaginávamos, não? — fora Natalie a primeira a falar, esticando o braço para segurar a mão do xerife sobre a mesa. — Acho que gosto mais de você a cada nova descoberta que faço, Charlie. É bom ter um amigo por aqui.

   — Também é bom ter uma amiga, Natalie. — ele concordou, feliz em ter pela primeira vez em meses alguém com quem pudesse conversar.

   No fim, as pessoas só precisam ter alguém com quem contar.

Equinócio - TwilightΌπου ζουν οι ιστορίες. Ανακάλυψε τώρα