3. A Aparição

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          Como dissera o procurador do rei à sra. Danglars, Valentine ainda não se restabelecera.

          Alquebrada pelo cansaço, continuava efetivamente de cama, e foi em seu quarto, e pela boca da sra. de Villefort, que ela soube dos acontecimentos que acabamos de narrar, isto é, da fuga de Eugénie e da prisão de Andrea Cavalcanti, ou melhor, Benedetto, bem como da acusação de assassinato de que este era objeto.

          Mas Valentine estava tão fraca que esse relato talvez não lhe houvesse causado todo o efeito que teria produzido sobre ela em seu estado de saúde normal.

          Na verdade, eram tão-somente algumas ideias vagas, algumas formas difusas, além do mais misturadas a idéias estranhas e fantasmas fugazes que nasciam em seu cérebro enfermo, ou que passavam diante de seus olhos, e logo tudo se apagou, permitindo que as sensações pessoais imperassem novamente.

          Durante o dia, Valentine agarrava-se à realidade por intermédio de Noirtier, que era transportado até o quarto da neta e ali ficava, acariciando-a com seu olhar paternal. Mais tarde, quando retornava do Palácio de Justiça, era Villefort por sua vez quem passava uma ou duas horas dividindo-se entre seu pai e sua filha.

          Às seis horas, Villefort retirava-se para o seu gabinete. Às oito, chegava o sr. d'Avrigny, trazendo pessoalmente a poção noturna preparada para a moça. Em seguida levavam Noirtier.

          Uma enfermeira escolhida pelo médico substituía todo mundo e só se retirava quando, por volta das dez ou onze horas, Valentine já dormia.

           Ao descer, essa enfermeira devolvia as chaves do quarto ao próprio sr. de Villefort, de maneira que não se podia mais chegar perto da doente a não ser passando pelos aposentos da sra. de Villefort e pelo quarto do pequeno Édouard.

          Todas as manhãs, Morrel visitava Noirtier para saber notícias de Valentine, mas o jovem, coisa extraordinária, parecia cada dia menos preocupado.

          Primeiro, Valentine, embora às voltas com uma violenta exaltação nervosa, melhorava dia após dia. Depois, Monte Cristo não lhe havia dito, quando ele acorrera desvairado à sua casa, que, se em duas horas não morresse, Valentine estaria salva?

          Ora, Valentine estava viva, e quatro dias se haviam passado.

          A mencionada exaltação nervosa perseguia Valentine até em seu sono, ou melhor, no torpor que sucedia a sua jornada. Nessas horas, no silêncio da noite e da semi-penumbra proporcionada pela mecha sobre a lareira e queimando em sua redoma de alabastro, ela assistia ao desfile das sombras que vêm povoar o quarto dos enfermos e dão calafrio com suas asas oscilantes.

          A moça julgava então ver ora sua madrasta ameaçando-a, ora Morrel estendendo-lhe os braços, ora criaturas praticamente alheias à sua vida cotidiana, como o conde de Monte Cristo.

          Tudo, até os móveis, nesses momentos de delírio, parecia-lhe movediço, enevoado, e isso durava até as duas ou três da manhã, quando um sono de chumbo vinha raptar a moça e conduzi-la até o dia. A noite seguinte àquela manhã em que Valentine soubera da fuga de Eugénie e da prisão de Benedetto, quando, após se misturarem por um instante às sensações de sua própria existência, esses acontecimentos começaram a sair pouco a pouco de seu pensamento, após a debandada sucessiva de Villefort, d'Avrigny e Noirtier, enquanto soavam as onze horas em Saint-Philippe du Roule, e a acompanhante, tendo colocado ao alcance da mão da doente a beberagem preparada pelo médico e fechado a porta do seu quarto, escutava trêmula, na copa, para onde se retirara, os comentários dos criados, e mobiliava sua memória com as lúgubres histórias que, há três meses, entretinham as noites das antecâmaras do procurador do rei, uma cena inesperada aconteceu naquele quarto inexpugnável.

O Conde de Monte Cristo - Alexandre Dumas (Clássicos Zahar)Where stories live. Discover now