Catedral

226 48 7
                                    

       Na crença que a memória pouco se limite aos seres vivos, um lugar também pode protagonizar uma história. E assim foi. Durante a madrugada, a última oração ecoou. Em meio aos longínquos corredores, envoltos por grandes tijolos de pedra, a catedral abrigava somente uma alma desperta. E esta, via-se determinada a olhar pela janela, fixamente. Os olhos claros, ensaiando o choro, fitavam a ponte que cruzava o rio. Do outro lado, distante e quase invisível pela neblina, o vilarejo.
       Um mísero ármario de madeira fazia volume no cômodo, abrigando cinco batinas penduradas, e isso era tudo o que ele tinha. Exceto pela sexta, que trajava naquele exato momento. Uma bacia de ferro com água por acabar ocupava metade da escrivaninha. E o livro sagrado encontrava-se largado ao chão. Pobre vida. Goteiras insistentes sonorizavam o aposento, e o quarto iluminou-se pela última vez com o amarelar da chama de sua última vela.
       Pouco amanheceu e aquele corpo resolveu, finalmente, levantar-se da cadeira. Era notável que sentia formigamentos insuportáveis, afinal, ali varou a noite. Descalço, fez barulho nas escadas úmidas e escuras. De saída, a enorme porta de madeira fez um estrondo, mas o mundo parecia vazio.
       Caminhou entre as pedras senis, com destino à ponte. A neblina estava baixa, ocultando grande parte da visão. Tudo tinha um tom de cinza, azul e verde, afora as gaivotas brancas que bateram asas e se dispersaram. O padre tinha passos brutos, e a ponte se estremecia a cada milímetro, a cada mancha de musgo.
       A água abaixo de seus pés corria calma e silenciosa, convidativa. O vento gelado soprava os cabelos castanhos e a batina preta em direção contrária, misturava-se com o bafo quente de sua boca e lhe deixava eternas securas. A garganta arranhava tanto quanto a estrutura da ponte, ele ruía-se por dentro, e a ponte por fora.
       O sereno molhava o edíficio gótico e suas janelas, a chama amarela que ao longe ainda se via, se desfez. Já distante, a catedral presenciou seu último olhar de desespero. E esta lhe respondeu com as batidas do grande sino. Sem hesitar, pulou.

Crônicas que deram errado e a vida como ela éOnde as histórias ganham vida. Descobre agora