Alcochete

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            O roçar da língua em seus lábios carnudos antecediam o ritual. A contração dos contornos sutis de sua boca preparavam o mundo para ouvi-la. Libertando ao vento a musicalidade intrínseca de sua voz, ela pedia alguns poucos rabanetes na quitanda da vila. Sempre de manhãzinha, e pontualmente às quintas, Yrene deixava seus trocados, e um "bom dia" ao velho da quitanda.
             A pele cor de cobre acentuava-se naquele Sol tímido, mas que já despertava lá suas quenturas. E a menina de pernas longas pisava tranquila nos tijolinhos do chão, e estes, se pudessem, testemunhariam toda a sua formosura. Possuía castanhos caracóis na cabeça, presos de qualquer maneira, emoldurando o mistério de um rosto. Era tanta interrogação que aqueles olhos de esmeralda deixavam, que toda a Alcochete já se perguntara, quem seria a tal mocinha dos rabanetes.
            Alguns falavam dos olhos amanhecidos, como quem acordava de um sonho eterno. Já outros, encantavam-se pelo arrebitar de seu nariz ou a delicadeza das suas sobrancelhas finas de pelos compridos. Mas na verdade, Yrene era obra que pouco se vê a caminhar por aí. E também se faziam poucos, os moços que arriscavam galanteá-la. Sempre que girava solene aquele pescoço longo, lançava alguns olhares, com alguns segredos. Yrene despertava algumas amarguras nos céus de algumas bocas, e todas compartilhavam que era melhor deixar pra lá.
             Bem afortunados eram os vizinhos da casa amarela, que a ouviam cantarolar. Há boatos que se acordava triste, era pouco o som que fazia, e só aparecia na janela para regar as flores. E nem mesmo as velhas almas de Alcochete sabiam sobre a história da menina. Arriscavam dizer que era feiticeira, turista, mal-amada e outras tantas coisas. Mas a moça dos traços bonitos nada dizia, além de "bom dia". Toda a certeza da vila, está apenas na quitanda, que ela visitava às quintas. E o que fazia com os rabanetes... Isso não importa.

Crônicas que deram errado e a vida como ela éWhere stories live. Discover now