Lençóis de seda e algodão

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        O barulho do mar se abafa contra a madeira e o ferro, e as janelinhas redondas pareciam aquelas das lavadoras, típicas dos anos 60. Mesmo assim, seus velhos tímpanos e orelhas molengas, fartas de jóias pesadas, conseguem captar a sinfonia de algumas ondas. Não fosse o filho a berrar com a esposa no aposento ao lado, conseguiria ouvi-las melhor. Mas isso pouco importava, por setenta e cinco anos fez-se amante do borbulho da água. Se águas possuíssem cabos e rabos, ela os conheceria.
       Agarrou a borda do lençol de seda e o colocou na altura do queixo, feito criança amedrontada a olhar pela janelinha. Ela odeia lençóis de seda. E abomina os perolados. Mas lá estava, toda enrugada e cheia de dobrinhas molengas, tais como os lobos de suas orelhas, coberta por um reluzente lençol de seda. Perolado.
      Tirou seus olhos das janelinhas, e pôs-se a sentir o balancear do navio. E então, calhou da velhinha começar a rir. Se corou todinha de tanto soltar risadas. E pelo que sei, sua memória jamais se mostrou tão ávida, quanto naquela noite no navio.
      Faltava pouco para o almoço, e já não mais suportava o azedo cheiro do sabão. Tediosa, Isabel mascava um chiclete cor-de-rosa e borrachudo. Apoiada em uma das lavadoras verde-água, folheava as páginas de alguma revista que, cinquenta e três anos depois, ela ainda se lembraria da capa. Olhou para o relógio pendurado na parede, era hora. Saiu pulante pela lavanderia mal iluminada, ao som do borbulhar de muitas águas ensaboadas e cheias de sujeira. Estava para sair, mas foi impedida. E este foi um daqueles segundos que sentimos estar no ápice de nossas vidas.
         Uma figura loira e atrapalhada adentra a lavanderia do hotel. Carregada de lençóis. Perolados, e de seda. Os tacou em cima da primeira lavadora que viu, colocou as mãos na cintura e bufou encalorada. Tentou ajeitar o cabelo, mas os fios dourados insistiam em permanecer rebeldes. E mesmo assim, eram incríveis. Isabel permaneceu estática por alguns minutos. E naquele dia, ela não almoçou.
       Isabel sempre imaginava, sentada e a mascar chiclete, a história de cada roupa que via ser lavada. Estavam sujas pois tiveram o infortúnio de um banho de lama, ou estavam suadas depois de alguns amassos no sofá? Ela sempre se perguntava. Poderia ter imaginado mais, não fosse pelo retorno da loira de olhos claros e sardas amareladas. Hoje seu rosto branco coloria-se por um tom terroso nos lábios, e cinquenta e três anos depois, Isabel recordaria que este batom duraria por pouco tempo. Sabia também, que naquela mesma data, levaria suas roupas suadas para lavar.
        As duas moças conversavam sobre o universo, deitadas no sofá da mais chique suíte do hotel. E não era o sofá de Isabel, era o sofá da loira. Tudo o que Isabel sabia, era que vinha da Alemanha para alguns desfiles. E deitada no sofá da moça esbelta, que ocupava-se em fumar elegante um de seus cigarros caros, Isabel também sabia, que um dia, ela haveria de pagar pela estadia. E isso aconteceria, aproximadamente, dali a quarenta horas.
      Limpar as lavadoras tornou-se menos repugnante, e seu chiclete cor-de-rosa menos borrachudo. Mas os lençóis de seda perolados continuavam lhe parecendo estranhos. Depois de um beijo, a alemã nervosa fez um pedido à Isabel. E esta aceitou. Lhe entregou algumas notas tiradas do jeans surrado e de cós alto. Partiriam pela manhã. Era loucura, mas para elas, não tinha problema algum.
        Amanheceu e ela despertou. Ainda de olhos fechados, Isabel chegou a pensar que sentiria saudades do borbulhar das lavadoras verde-água. E também de olhar através de suas janelinhas redondas, que se pareciam com aquelas dos grandes navios.
      Colocou os pés no chão gelado, tentou não fazer barulho ao pegar a mala. Estava escuro, e guiou-se pelo tato. Mas não encontrava... Não encontrava a maçaneta. Acendeu a luz.
       Isabel chorou por horas, xingou, ameaçou se matar. A porta continuava fechada. Seus pais estavam aos prantos do outro lado, mas jamais permitiriam que ela partisse com uma desconhecida estrangeira. E assim foi.
         Isabel continuava deitada, sorrindo. Como se chamava, ela não fazia ideia. Ora tinha rosto de Gisela, outrora Barbara. Isabel não soube se ela a esperou por muito tempo e segurou a partida do avião, se ficou triste ou nem ligou. Nunca soube se teve filhos, casou-se ou até mesmo se viveu tanto quanto ela. Mas em sua memória, Barbara, ou Gisela, que seja, continuava a mesma. A loira esbelta dos lençóis de seda perolados.
      Isabel pouco soube sobre essa paixão. E evitou mesmo entendê-la. Mas era curioso, pois dizia a si mesma, "Se esses alemães não tiverem outros lençóis, a não ser esses abomináveis perolados de seda... Fico feliz de estar levando os meus de algodão."

Crônicas que deram errado e a vida como ela éWhere stories live. Discover now