O pianista

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           Parado perto da janela, por ela, observava o mundo. A cortina estava semiaberta, deixando a pouca luminosidade daquele dia nublado adentrar à sala. O tecido acinzentado balanceava sutilmente no espaço. Lá fora, flores e suas pétalas caíam e deitavam-se sobre o portão escuro e as fendas da calçada. O Ipê branco. 
            As paredes do cômodo tão claras, expandiam a visão. E contrastavam com o piano preto, solitário. Sentou-se e observou o instrumento, seu teclado e suas cordas. A fineza do objeto lhe causava arrepios, perfeito e preciso. Gostava de vê-lo como um corpo, delicadamente liso e de curvas acentuadas. 
           Deixou que seus dedos tocassem as teclas, inundando a sala numa nota aguda, como agulha de prata. Que perfura, e faz doer. Fez melodia de alguns acordes, e quase emburrou-se. Era negro, como fios de cabelo, curtos e encaracolados. Fechou os olhos. Não queria lembrar-se dela. 
          Extendeu o outro braço e iniciou a música. Escalas de dó maior ocupavam o oco, o vazio. E faziam trilha à solidão de um pianista. Tecla por tecla, e de olhos fechados, sua mente pintava um quadro de memórias. Que corria pela casa, enrolada numa colcha branca, e lhe atirava travesseiros ainda quentes. Mais outros tons, e lembrou-se de como ela adorava dançar, cuidar de seu Ipê branco e frequentar os concertos. E foi assim que tudo se desandou. 
          Os graves ecoavam pela casa vazia, suspiros. E a memória, que infelizmente, pouco falha, lhe retomou ao fatídico dia. 
          Chegou em casa, após um longo ensaio, no qual ela não se fez presente. O florir do Ipê estava tão belo quanto jamais esteve, mas ela não estava lá para presenciá-lo. Visto a dimensão de toda a estranheza, decidiu procurá-la. Subiu as escadas, chamando-a, e carinhosamente fez de "meu bem" a metonímia perfeita para Olívia. Caminhou lentamente pelo corredor do piso superior, uma luz vinha tímida de uma porta entreaberta, acompanhada por afinados suspiros apaixonados e dois corpos suados. Observou e sofreu em silêncio. Estavam em eterno frenesi, apoiada no piano, gemeu enquanto apertava um grave. E aquele timbre ecoou eternamente no peito do pianista. 
         E no dançar dos dedos, passou dos graves para os agudos. E entre pretos e brancos, fez-se escala de cinza. Lembrou-se de quando a mandou aprontar as malas e partir para sempre. Deixando tudo nublado, como o céu daquele e de outros tantos dias. 
         E após Olívia, compõe para a solidão, feito um astronauta no espaço, antigravitacional e sufocado. Preso num eterno preto e branco, o piano e o Ipê.

Crônicas que deram errado e a vida como ela éOnde as histórias ganham vida. Descobre agora