Cartas às Quartas

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          Tomou coragem, finalmente sorriu para ele. Alto e esbelto, com cabelos ondulados e castanhos, – ou talvez fossem ruivos, ele mal sabia – acompanhados por charmosas sardas no rosto. E este retribuiu. Poucos olhares depois e já estavam de corpos colados e beijos rápidos numa escada de emergência qualquer. 
          Na volta para casa, a camiseta branca que há pouco estava no chão, tinha manchas de poeira, o pescoço abrigava uma leve vermelhidão, ele continuava sorrindo. Cruzou os braços para se proteger do frio, uma brisa gélida vinha das árvores em volta da estrada, sozinho, sentia-se livre. As folhas caíam e dançavam com o vento, a lua aparecia, estava tarde e ele já mirabolava alguma desculpa que convencesse seus pais pelo atraso. Um atraso que poderia congelar-se no eterno, ele não se importaria, estava mais feliz do que nunca. 
          Chegou, disfarçou, rondou a cozinha e bebeu leite. Trancou-se no quarto, seu refúgio. Abraçava o travesseiro e olhava o céu estrelado, fitava o ármario, o escuro, fechava os olhos. Dias e dias. 
          Uma semana depois e já se encontrava pouco esperançoso, um vulto do lado esquerdo lhe chama a atenção, esbarrou e doeu. E como doeu! Era ele. As sardas se aproximavam dos olhos enquanto abria um sorriso, era um chamado. Doeu mais ainda, o coração palpitou e ele mal respirava, andava trêmulo e ansioso, a barriga virara um borboletário, formigueiro ou colméia, que seja! Doeu. Escada de emergência, e tudo se repetiu. 
        No mês seguinte, mais um ano de vida, o dono dos cabelos – agora, com plena certeza – castanhos, comemorava vinte anos. Outro encontro à meia luz, meias palavras e um amor inteiro, ele ganhava um presente. A tão desejada máquina de escrever estava ali em suas mãos. Mal acreditou, pulou de alegria, aquele era o dia mais feliz de sua vida. 
         A distância continuava a mesma, três quarteirões e algumas esquinas preconceituosas, a luz do dia e os olhos raivosos, as calçadas largas que permitiam um abismo entre suas mãos, porém, acostumaram-se. Mas o barulho da máquina de escrever era sinfonia, inundava a casa toda semana, sem atraso nem demora, era pontual e parecia encurtar a distância. Às quartas deixava numa caixa de correio, a três quarteirões dali, mais uma carta para ele. 
          Outra semana, outra carta, o escrever estava frenético, mal continha-se de saudade, era quarta-feira, mas a sexta à noite sempre parecia tão distante. Errou, droga. Perfeccionista, começaria de novo. Arrancou a folha, deixou sobre a mesa, estava quase acabando, que pena. Literalmente, a partir daí, estava quase acabando. 
          A carta foi entregue, do outro lado da rua, o observou caminhar para apanhá-la, como sempre. Dois minutos em que os olhares se namoravam, e ele partia. Infelizmente partiu de volta para a casa. Chegou lá, olhares furiosos, gritos, uma carta na mão, quase terminada. O mundo caiu. Ninguém aceitava, ninguém sabia o que fazer, ninguém compreendia, ninguém. 
         Quarta-feira, tentaria cumprir o combinado de forma ainda mais escondida. Foi impedido. A máquina não estava mais lá. O pai ao pé da porta o fitava – "Foi para o lixo, e você irá para outro colégio em outra cidade, já que não se pode jogar veados no lixo também." 
         Uma semana e compreendeu, duas, nem carta e nem o encontro no local de sempre, três semanas e nenhuma notícia. Simplesmente desapareceu. Desesperou-se, rondou os três quarteirões, o bairro todo. Chorou por dias. Era tão real e simplesmente sumiu, ninguém viu, ninguém sabe, ninguém.
         Um mês e meio depois, a distância aumentou e agora não haviam cartas que amenizassem, ou encontros rápidos que matassem a saudade. Cada um de um lado, cada um com sua decisão, mas nenhum dos dois sabiam disso. O remetente para um novo começo, e o destinatário para o fim. O escritor, pronto para virar as páginas, de coragens e malas feitas, à caminho da cidade natal. O leitor, pronto para colocar um ponto final, vinte comprimidos e um copo d'água, apenas, à caminho. Tomaram coragem, sorriram, iriam se encontrar, por caminhos diferentes.

Crônicas que deram errado e a vida como ela éOnde as histórias ganham vida. Descobre agora