As laranjas

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       O cortar da faca não hesitava, era rápido e profundo, metades simétricas por todos os lados. As laranjas pareciam penas em espadas. O sol brilhava e o azul do céu estava incrível, não havia uma nuvem sequer. A brisa fresca das onze da manhã, o som das andorinhas que por ali voavam, os risos no quintal acompanhados de cigarros e bebidas caras. Cercas brancas e grama verde, tortas americanas ainda mornas, com aquele sutil evaporar de odores sobre uma linda mesa coberta por uma toalha quadriculada. As crianças na piscina, bóias, toalhas, toucas e protetores solares. A vista da cozinha era realmente privilegiada.
       Ela estava concentrada nas laranjas, tão doces como o dia, tanto quanto aquela vida. Com seu melhor vestido e um sorriso brilhante envolto por lábios rosados - característicos de uma mulher de respeito, devota aos filhos, marido e todo o conforto da qual não poderia reclamar - ela cortava os magníficos frutos cítricos, típicos da temporada. E também cortou-se. O sangue pingou, escorreu, ardeu e manchou, ele estava lá, um pequeno corte. Ela paralisou e sentiu a dor, o sorriso sumiu e as vozes ecoaram num eterno segundo, um eterno estalo. Não se pode disfarçar um pequeno sangramento, nem mesmo um pequeno desconforto, e tampouco uma grande infelicidade.
       Malas embaixo das camas, dinheiro reserva e duas passagens aéreas. O plano estava feito, e desfeito, arquitetado, recalculado, planejado, voltado ao zero, recomeçado, mas naquele dia, estava feito. Depois de sete anos, finalmente terminado. E seria ali, mesmo com o dia ensolarado, cheio de risos e cigarros, cercas brancas e lábios rosados, ela fugiria.
       Estancou o sangue, as laranjas brilhavam e estavam todos tão distraídos. Era hora. Correu para as escadas, o coração na boca e a vida por um triz, ou um chamado. "Mãaae!".
       Voltou, fora da cozinha, fora de casa, fora do plano. Todos em volta do pequeno na borda da piscina. Outro sangramento, escorregou, caiu, como aconteceu ninguém sabe. Ninguém nunca sabe como tudo acontece e como paramos onde estamos, muito menos como saímos dali. O sangue escorria, e ela paralisou novamente, o sangue pingou e ela tremeu. O corte que lhe deu gás para fugir, agora lhe fazia ficar.
       Band-aid colado e já estava serelepe novamente. Outro chamado. Cabelos ondulados e sorriso jovial, ele queria fazer um brinde, afinal de contas, aquele era o aniversário de casamento. Mãos trêmulas, joelhos ao chão. Ela mal respirava, e era isso, queria morrer. Segunda lua-de-mel, renovação de votos, outro filho, será?! "Que venha com saúde!". Todos vibrando, familiares e amigos, risos e abraços, presentes e beijos. Ela aceitou.
       Outro corte, o dos planos e esperanças, o da liberdade e de um belo "adeus.", tudo estava indo pelo ralo. Talvez outro dia, talvez no próximo mês, forjar um sequestro também era uma opção. Ou seria muito dramático? Ela não sabia, nunca soube, ela só estava de volta. O coração não mais disparou, a boca já estava rosada de novo, os olhos calmos e serenos. As laranjas brilhavam, e a faca também. Outro corte. Era a última laranja, ela as amava, sua fruta preferida.

Crônicas que deram errado e a vida como ela éWhere stories live. Discover now