Corra!

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          Ela estava correndo, assim como fazia todo fim de tarde. Exercício físico é bom para a saúde – todos dizem. Por vezes tentava convencer-se de que era este o fim das caminhadas, mas no fundo, sabia, não era. A cada passo, sentia a adrenalina percorrer todo o seu corpo, ocupar sua mente, suas memórias, tudo. 
          Um, dois, três... Após o quinto pingar da chuva gelada, ela percebeu, a tempestade havia chego. Fria e lenta, como lâminas que caíam do céu sem nenhum pesar, sem dó. Não há ninguém olhando por ela, correndo na chuva, longe de casa. Sozinha. 
          Começou a fazer o caminho de volta, correndo ainda mais rápido, numa avenida deserta. Virou uma rua, atravessou outra. Que longe! Decidiu cortar caminho. 
          Seus passos rudes tentando fugir da escuridão que se formara faziam estalos nas poças d'água. Outros passos também. Ou não. Podem ter sido fruto da imaginação – assim pensou. Continuou a correr, as pernas bambeavam e a respiração estava incerta, quase nula. Boca seca e olhos que marejavam, tentando vislumbrar alguma boa alma que pudesse ajudá-la. Mas haveria ali uma boa alma? Que ou quem seriam boas almas? Ela não pode confiar de novo. A corrida rude, agora, encontrava-se desesperada, e reais ou não, ela ouvia outros passos. 
          Mal podia acreditar, a corrida que lhe fazia enterrar de pouco em pouco aquelas memórias fúnebres, a colocara em risco novamente. Ela precisava esquecer. Olhou para trás, estava escuro. Olhou para frente, parede. Perdida. Correu tão ferozmente que mal sabia onde se encontrava. 
          Procurou saída, encontrou vielas. Buscou ajuda, mas só havia o estalar de passos em poças d'água. Quantas poças! Quantos passos! Cada vez mais perto, mais escuro, longe ou ao horizonte. Ela não lembrava-se de nada. Olhou para o céu, gritou, ajoelhou. Puxou os cabelos, fechou os olhos. 
          Ouviu um ruído. O medo a fazia paralisar, mas este também era como chuva ácida, mesmo que ardesse e queimasse, destruía as grades, ela o enfrentaria. Perderia o temor que a persegue há meses, sim! Levantou-se, pernas trêmulas, mas confiantes, músculos rígidos. Voltou. Estava indo em direção ao ruído, sem medo, era agora. Era agora! Ela estava lá, ela olhou. 
          A chuva parou. E não havia ninguém.

Crônicas que deram errado e a vida como ela éOnde as histórias ganham vida. Descobre agora