Escafandro

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            Gotas insistentes de uma torneira um tanto envelhecida eram pontualmente melódicas aos seus ouvidos. Aquele corpo estático mimetizava um espécime de astronauta, preso em seu próprio ofício. Pendeu a cabeça para trás e sentiu o peso daquela atmosfera, aquele formigamento nas maçãs do rosto e a insensibilidade de seus dentes. Sentia-se impotente. Sentia-se um átomo. Sentia que o entrelaçar dos dedos foi curto. Sentia que apesar de intenso o tempo lhe tirou para dançar rápido demais e na melodia ela fechou os olhos, não o viu passar. O gelo derretendo incansável fazia um teatro vivo de cada instante do universo, se liquefazendo. Vai-se, perde-se. E é por isso que apesar das amarguras, no mais íntimo de seus bastidores, suas entranhas ainda floriam. Suas vísceras ainda pulsavam. E era tudo vermelho, tudo gritante e vívido. Era de pouco em pouco. Era tudo ou nada. Uma parte de si mesma debatia-se dentro de seu próprio escafandro, a procura de tempo pra passar, a procura desse pouco que dá sentido e que faz sentir. É preciso esticar as pernas e desfazer-se das câimbras que te imobilizam em mais do mesmo. É preciso revelar as epifanias e viver. É preciso deixar o tempo passar na condutância de cada centímetro de pele, é preciso deixar ir, é preciso esperar voltar. É preciso não sobrar nada para os epitáfios, é preciso estar. Porque o tempo é gás, é pó, e ele te puxa para dançar.
            Gotas insistentes de uma torneira um tanto envelhecida ainda eram pontualmente melódicas aos seus ouvidos. Levantou-se e discou um número. 

Crônicas que deram errado e a vida como ela éWhere stories live. Discover now