Uma visita

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André

Andar por ali sem sentir tristeza pelo que via, seria como não ter um coração batendo no peito. A vila da procriação era um bairro de luxo perto desse bairro.

Desde as mudanças, muitos escravos libertos estavam rumando para a prisão dos leviatãs, um lugar que até pouco tempo atrás estava abandonado por conta da localização tão distante de tudo e agora era o refúgio dos abandonados, o único lugar que eles sabiam que os acolheria.

E agora, depois de tantos acolhidos, tinha virado basicamente um bairro repleto de moradores. A pobreza estava se concentrando no mesmo lugar. Barracos precários de peles, palha e todo o tipo de material recolhido do lixo e da floresta interna da prisão estavam espalhados por todo lado.

A passagem era livre então esse era o destino para um verdadeiro êxodo de miséria, todos que chegavam estavam encontrando seu canto, se ajeitando como podiam e engordando a massa de moradores do lugar fechado de altos muros.

Chegar a eles era um pouco demorado. Cavalgar algumas léguas de terra e depois passar pelo segundo bairro da Procriação que era extremamente novo e pouco menos pobre que a prisão.

O antigo rei Júlio estava criando esse bairro para acoplar as famílias miseráveis para que continuassem a ter seus filhos e filhas para aumentar ainda mais a riqueza dos mais abastados. Agora essa estrada para a nova vila dos Procriadores também era o caminho para chegar ao refúgio dos renegados. Por sorte, essa vila não mais fora mexida e esse comércio de pessoas tinha acabado graças a quem menos eu esperava.

O rei era um maldito tirano que buscava a vida eterna chegando a usar a menina Diana como escrava de sangue somente para conseguir esse intuito. Por fim, o homem que eu mais abominava na vida e que sempre me fez acreditar que iria deixar o rei ainda mais poderoso do que já era, o matou a sangue frio, o usou como um amante somente para seus propósitos. Como era irônico tudo o que eu havia visto até essas mudanças acontecerem realmente.

Tudo começou com aquele atrapalhado do terceiro príncipe sombrio que havia salvado minha vida na floresta quando a vida já me deixava por conta do ataque de um leviatã. Se não fosse aquele príncipe sombrio e sua mistura, eu não estaria aqui para ser escolhido para aquela missão desumanada de chacinar aquelas garotas do pacote de vinte anos. Também não teria poupado a vida daquela menina e nem tinha a ajudado a chegar ao reino sombrio.

Talvez, se aquele príncipe não tivesse se condoído de mim há tantos anos atrás, hoje eu poderia ainda ser um escravo e ainda veria mulheres sendo vendidas no harém, não teria participado de uma guerra e nem teria reencontrado minha filha depois de tantos anos. E não também, não teria reencontrado o amor.

Todos diziam que o marco das mudanças era aquele celeiro onde a chacina tinha acontecido. Mas não era essa assim que eu via. Para mim tudo começou com Dimitri, esse era o marco das mudanças na minha visão, foi por causa dele e sua peraltice com os irmãos mais velhos que tudo começou a andar para esse momento de agora, para esse momento onde mais uma vez eu tentaria negociar com aquele cabeça dura que nunca aceitava minha ajuda. Quem sabe hoje eu tivesse mais sorte.

Para chegar até ele tinha que passar pelo bairro novo e chegar às muralhas gigantes onde os portões não mais existiam, os guardas que antes andavam pela muralha também haviam sumido.

O local criava vida como mais um bairro miserável que estava nascendo por conta própria no reino humano e por conta disso, era de responsabilidade do rei, mesmo que ele não tivesse noção da existência daquele lugar.

Eu não tinha contado a ele para protegê-lo, os outros também não se incomodaram em contar porque esse bairro novo e o que acontecia ao redor dele não interessavam aos mais abastados. Mas o rei ainda iria saber, quando a hora certa chegasse.

Decidi não arriscar a vida do meu cavalo atoa e parei pouco antes, se entrasse com ele poderia perdê-lo, ele viraria alimento de uma forma ou de outra. Esse era o boato pelo menos, mas... Vai saber, poderiam mesmo comê-lo ou trocá-lo por comida e eu gostava do animal o suficiente para não desejar a ele esse fim. E como me conheço bem, também não lutaria com eles para salvá-lo, pois não teria coragem de tirar deles uma chance de conseguir comida, então para poupá-lo o deixei na estalagem e segui o resto do caminho andando.

Marcos, filho de Uzias, me aguardava encostado perto da entrada, os braços cruzados deixando à mostra uma grande quantidade de músculos que ele tinha adquirido com os anos de servidão e serviços pesados.

— Salve, André.

Segurei sua mão suja, pobre rapaz estava imundo e muito magro, ainda não estava só pele e osso, mas não havia uma grama de gordura em seu corpo, somente músculos e ossos. Ele me olhou com esperança e desafio, o que só mostrava seu desespero.

— Alguma novidade boa para esse povo miserável?

Havia uma notícia boa referente a horta, algumas famílias da casta dos procriadores já tinham manifestado vontade de tentar, sem contar o menino Daniel e todos os seus saltimbancos nem tão engraçados assim. Mas se Marcos tivesse paciência essa mesma noticia poderia ficar melhor ainda visto que se desse certo, muitas fazendas abandonadas poderiam ser utilizadas para esse fim e ele poderia mandar seu povo para lá, no entanto, nada era de graça e nem todos poderiam ir e era para isso que eu estava ali. Mas depois de alguns encontros nada amistosos, eu já imaginava sua reação.

— Precisamos conversar Marcos.

Ele apertou o maxilar se contendo. Seus olhos castanhos brilharam de raiva.

— Então você não tem nada para mim!

— Ao contrário, mas se quer ajudar os seus terá que me ouvir sem perder a calma dessa vez.

Ele apertou os lábios e me fitou pensativo, eu conhecia esse olhar, já o havia visto muitas vezes quando era escravo. Um olhar de quem não tem muito a perder. Por fim ele assentiu.

— Estou ouvindo.

— Acho que poderíamos sentar e comer alguma coisa enquanto conversamos, que tal a estalagem?

Seus olhos faiscaram de orgulho. — Não preciso de sua pena, André.

Levantei os ombros e me virei em direção ao bairro novo.

— Não precisa comer nada se não quiser, eu vou comer algo porque estou faminto e você bebe água, se lhe aprouver.

Em silêncio ele me seguiu, sorri disfarçando o quanto gostava do jeito daquele rapaz. Era orgulhoso, ainda assim não era idiota. Uma refeição mesmo que vindo de um lugar duvidoso como a porca estalagem daquele bairro novo, ainda era uma refeição.

*****

*-* Mais um cap nuss

Tratado dos Párias- O rei rebelde. ( Degustação)Where stories live. Discover now