Cascas Vazias

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Tiago

O silêncio daquela noite foi interrompido pelos gritos que já estavam se tornando constantes. Levantei de um pulo e corri para a porta, assim que a abri encontrei os guardas em alerta.

Levantei a mão. — Deixem! Assunto de família.

Corri pelo corredor, o chão gelado me fez lembrar que não me vesti para sair. Estava apenas de calção.

Lindo! — Revirei os olhos, exasperado. — Um rei correndo pelado pelo seu glorioso castelo. Não me admirava os inimigos estarem atormentados, talvez eu fosse um rei louco na visão deles.

Cheguei à porta e escutei a voz da minha mãe, coitada... Nem todo o luxo de uma nova vida conseguiu tirar dela o sofrimento. Abri a porta e ali estava Celina se debatendo na cama. Sons confusos saíam de seus lábios enquanto ela lutava com minha mãe que me olhou em desespero.

— Não sei o que está acontecendo com ela, meu filho. Piora a cada dia. Estava melhorando, e olha agora.

Sentei na cama, puxei Celina para mim e segurei com força seus braços junto do corpo. Ela tentou se debater por um bom tempo, não afrouxei o aperto, não queria machucá-la, mas se ela continuasse desse jeito poderia se ferir sozinha.

Logo ela se acalmou e continuei segurando firme por mais um tempo, a ninando em meus braços, por fim ela se aquietou. Afrouxei o aperto e a abracei, ela ficou gemendo e chorando enquanto soltava sons monocórdicos como uma criança que ainda não sabe falar.

Olhei preocupado para minha mãe. — Não sei o que há, porque não arrisca deixar ela com os lobos?

Os olhos de minha mãe logo brilharam de angústia, mas continuei minha vã tentativa de lhe abrir os olhos.

— Já pensou que isso poderia fazer bem a ela?

Dona Clara levantou nervosa. — Não! Os lobos são brutos e tem um costume que não consigo aceitar. Não posso! — Ela se virou para mim, os enormes olhos negros já brilhando pelas lágrimas. —Eu amo Celina, não suportaria vê-la como companheira de um lobo selvagem. Eles lutam entre eles para que a marca do companheiro possa nascer. Minha Celi é frágil e já apanhou demais nessa vida, não é justo continuar apanhando, mesmo que não seja pelo mesmo motivo.

Continuei a embalar Celina que havia se acalmado completamente agora.

— Mãe, você está com medo atoa, conheceu Laican e viu o amor nos olhos dele. Ele jamais fará mal a ela.

Ela torceu a mão nervosa lutando com os próprios sentimentos. — Eu sei filho, ele me deu um ano e estou disposta a usar esse tempo para trazer minha filha de volta. Se ela voltar para mim e falar que quer ir com ele, eu permitirei que vá e não irei colocar nenhum obstáculo. Mas ela não está em condições de decidir nada agora.

— Mãe você nem...

— Nem mais uma palavra sobre isso. Se ela mesma não me disser que quer ir, não permitirei que ele a leve.

Amargurado por fazer minha mãe sofrer com isso, não pude concordar com sua decisão e novamente a lembrei do acordo. — Por um ano, não esqueça que também deu sua palavra a ele.

Ela sentou na cama e passou a mão com carinho pelos cabelos de Celina que agora já ressonava baixinho em meus braços. Seus olhos marejaram de angústia e ela olhou para mim.

— Meu maior arrependimento Tiago, foi ter prometido isso ao Supremo dos Licans. Desde que fizemos esse acordo ele nunca mais procurou Celina, está cumprindo o que prometeu. Mas não sei se terei forças para cumprir a minha parte.

Baixei os olhos dando um beijo no topo da cabeça de minha problemática irmã mais velha para disfarçar a culpa que estava em meus olhos. Não podia comentar que pelo menos uma vez a cada duas semanas ele vinha visitá-la e eu facilitava para que ele pudesse vê-la de longe.

Eu já sabia o que era sofrer por um sentimento que inunda o coração de dor somente por não poder tocar ou ver quem ama, e agora depois que Amélia veio para ficar definitivamente isso parecia ainda mais doloroso, estar perto e não poder alimentar o que sente por obrigações idiotas. Por isso eu estava ajudando Laican, pois mesmo que Celi não estivesse bem, eu não queria arriscar que ela também não ficasse com quem poderia fazê-la feliz somente pelos medos de minha mãe. Ela continuou a falar, inocente de minha culpa.

— Meses já passaram e nada do que fiz trouxe Celina de volta. Contratei criados de confiança que a tratam com amor todo o tempo. Contratei um idoso somente para que lhe faça companhia e lhe conte histórias e sei que ele é paciencioso e muito preocupado com ela.

Ela balançou a cabeça desconsolada. — Nada trás luz aos olhos dela, meu tempo está acabando e não vejo melhoras, só piora a cada dia.

Dei mais um beijo na cabeça de Celina e a ajeitei na cama, tinha que tocar no assunto, mesmo sabendo que minha mãe não ia aceitar.

— Talvez, o que falte a Celina seja um motivo para sair desse mundo só dela. Já pensou nisso? Já imaginou que ela pode ter encontrado Laican quando estava lúcida? O amor dele por ela não é de hoje, você ouviu quando ele disse que havia perdido Celina há muito tempo, lembra disso?

Ela assentiu sem dizer nada e sem me olhar nos olhos, aproveitando que ela estava ouvindo sem ficar histérica, continuei.

— Talvez mãe, ela correspondeu ao amor dele antes de se fechar, talvez eles tenham uma história que não sabemos existir. E essa reclusão dela seja uma espera...

Ela cruzou os braços em total mostra de teimosia e defesa. Continuei com cuidado, tentando escolher as palavras certas. Esse assunto a deixava apavorada pelo medo do futuro de Celi, mas minha mãe tinha que tirar a cegueira do medo.

— Mãe, se ele a perdeu como disse é porque já a tinha encontrado antes e pelas próprias palavras dele, ela correspondia ao sentimento. Você está privando a Celi de ser amada porque a protege demais, está a privando de ser feliz porque tem medo.

— Pare! — Ela levantou a mão. — Pare agora. Eu tenho que protegê-la, ela não é mais normal como antes não consegue entender isso? Celeste eu permiti que vivesse entre os sombrios porque ela me pediu e porque pode voltar para casa quando quiser. Já Celina nunca poderá me contar se estiver sofrendo, nunca poderá dizer se quer voltar e nem mesmo pode me dizer se quer ir com ele. Ela está quebrada em mil pedaços e não vai ser apanhando de um lobo enquanto é domada por ele que ela irá se curar. Se não entende meu coração de mãe, saia. Por favor, me deixe com ela.

Eu sempre fui muito explosivo, inconsequente e errático, mas quando se tratava de minha mãe e Celi eu sempre pensava muito antes de agir. Ver tudo o que passaram, presenciar as surras de Celina, ver minha irmã mais velha tão cheia de vida e tão sorridente na infância se perder aos poucos, me deixou cauteloso com a maneira de tratar minha mãe.

Ela já teve sofrimentos demais na vida, tanto por Celina que foi a que mais sofreu nas mãos de meu pai, quanto por Celeste que quase teve o mesmo destino. Por isso, engolindo toda a vontade de discutir, de abrir os olhos dela, eu sai sem dizer nada.

Maldito! Meu pai tinha feito estragos em nossas vidas, mas em minha mãe ele fez pior. Deixou uma casca vazia e a encheu novamente de medos e desconfianças, a fez ver Celina se perder pouco a pouco.

Soquei a parede do corredor e apertei a testa na pedra fria me sentindo como sempre, impotente diante de tantas sequelas do passado.

Ele fez minha mãe cuidar de Celi, cuidar de cada corte a vendo sumir de si a cada dia de sofrimento e agora tudo o que restou a minha mãe era o instinto de proteção.

Sorri amargo. As sobras de Celi. Isso é o que minha mãe via ao olhar para minha irmã e era assim que ela a estava tratando. Como um sobra, como um resto do que um dia foi sua filha. Ela queria tanto preservar isso, que ficou cega pela proteção e o medo, esqueceu de ser mãe se tornando também uma sobra do que foi.

Minha mãe também se tornou uma casca vazia que estava fechada em seu próprio mundo. E seu mundo agora se resumia exclusivamente a minha querida Celi.

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Pronto! Aqui deu por hoje ahueahue. Ótima leitura :*

Tratado dos Párias- O rei rebelde. ( Degustação)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora