Farejando a Noite

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Naquela noite, a praça central de Bleak Hill estava um formigueiro. Aquela era uma cena que só se via uma vez por ano, no aniversário de fundação da cidade. Barracas de comes e bebes, feira de artesanato, circo e parque de diversões. Um palco montado ao lado da estátua de um dos fundadores era revessado pelas autoridades e artistas locais. Andy caminhou por entre a multidão com naturalidade, acostumado a cidades grandes e tumultos, diferente da maior parte da população de lá.

"Se eu fosse você, ia lá se divertir", disse Jimmy, o dono do bar no qual Andy vinha comendo e dormindo em troca de dar uma mão na limpeza. "Já beijei muitas gatinhas nessas festas, quando tinha sua idade".

Andy resolveu seguir o conselho, mas não estava atrás de gatinha nenhuma.

— Vê se olha por onde anda, garoto! — reclamou o homem bem arrumado em que ele esbarrou. — Ninguém mais tem educação, meu Deus.

Ele sequer olhou pra trás ou respondeu, o capuz do casaco escondendo sua identidade do sujeito de quem roubou a carteira. Era a terceira aquela noite, e após separar o dinheiro no bolso, o garoto largou o objeto pelo chão, com os documentos e cartões que não lhe interessavam. Uma noite especialmente lucrativa, ele devia mesmo uma ao Jimmy.

De repente, sentiu um cheiro diferente, que com dificuldade reconheceu como algo sobrenatural. "Seria o tal cheiro de vampiro do qual a garota falou?". Não, concluiu ele, era um cheiro familiar: Cheiro de lobisomem!

O garoto se virou rapidamente na direção do odor, corpo retesado, pronto para dar de cara com a gangue de lobos, o líder Malcom ou quem sabe com o sujeito que deixou em frangalhos na noite em que conheceu a matilha. Mas o que viu foi um cachorro quente em direção dos olhos, e segurando o alimento, o próprio Jammes Duncan.

— Quem não deve não teme, tá assustadinho, é? — perguntou ele. Jeans, blusa sem manga e tênis, comendo um e estendendo o outro ao garoto.

Ao lado dele, Mandy Duncan. Calça jeans rasgada e casaco, cachorro quente gigante em uma mão e lata de refrigerante na outra. Bebendo de canudo e com olhar de peixe. Andy mordeu seu lanche, falando de boca cheia:

—... fi graçaa, afe injefao na testa. — E depois de um tempo mastigando. — Minha garganta tá seca, arruma algo pra beber, também.

— Mas que mal agradecido. — Jimmy riu, batendo com força nas costas do garoto e depois pedindo o refrigerante para o dono da barraca.

— É um passa-fome mesmo — soltou a garota.

— Mas vejam só quem eu encontrei. — Andy logo reconheceu a voz, além do bafo de tabaco. — O maldito pirralho que destruiu minha hospedaria!

A voz era do velho Fremman, coincidentemente, dono da barraca em que os irmãos compraram o lanche, e outros trabalhavam.

— Tá falando de que, velhote? Desde quando quebrei alguma coisa? — questionou Andy, tentando esconder seu nervosismo.

— Lembro muito bem daquela noite, molecote, e aqui está meu braço quebrado que não me deixa esquecer. — E o trio viu o braço enfaixado do velho. — Você bagunçou o quarto todo quando virou aquela coisa, deixou seus trapos rasgados e depois ainda arrombou a porta comigo no caminho. E vai pagar caro por isso!

Andy desviou da bengala que o velho balançou em sua direção, com Jimmy tomando a frente.

— O que eu fiquei sabendo, senhor Fremman, é que tua pensão foi invadida por um cachorro dos grandes, não foi isso não? — Jimmy perguntou. — E que a porta tava tão podre que o bicho quebrou ela fácil, fácil, destruindo inclusive as roupas do garoto. Disseram até que era Deus te dando uma lição pra reformar aquilo lá.

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