Trabalho

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Nada acontece. 

Era uma noite quente e chuvosa e eu me dei folga.

Um corno havia me contratado para vigiar sua mulher e obter prova cabal do adultério, mas a ficha de sua senhora era longa e amplamente conhecida na sociedade. Mas ele queria gastar dinheiro com um detetive particular, e eu estava a fim de receber. Já tinha um acervo de fotos da devassa esposa, mas continuava enrolando o corno e assim lhe arrancando mais dinheiro.

E por isso, me dei uma noite de folga.

Com um cigarro entre os dedos, jazia deitado na cama regendo a orquestra de sombras que se moviam no meu teto ao ritmo do jazz que vinha do meu celular barato.

Eu nunca imaginei que seria um detetive particular.

Mas algumas pessoas têm dons. Uns têm o dom valioso de ganhar dinheiro, outros contam histórias, eu sou bom em descobrir segredos, os mais profundos segredos da alma das pessoas.

Todo mundo tem uma rotina, e se você aprender a olhar direito vai perceber os fetiches, os maneirismos e os segredos de qualquer um em plena luz do dia. Sem esforço.

Mas hoje não, hoje eu estava de folga. O corno estava me pagando pela folga, mas não precisava saber disso.

Eu acho interessante como nos motéis ninguém te faz perguntas. Chega a ser mais confortável que um hotel convencional. A primeira vez que usei um quarto fiquei pensando que iriam questionar o fato de alguém ir sozinho para um lugar onde geralmente se vai acompanhado. Mas eles mal te enxergam dentro do carro, apesar das câmeras.

Talvez queiram dar a falsa sensação de que seu segredo está seguro com eles. Não existem segredos que possam ser guardados para sempre.

A mentira é como essas pessoas que tentam criar animais selvagens em casa. Você pode criar um leão desde pequeno no seu quintal, mas por mais que ele seja domado e se acostume a viver na sua casa, você sabe que uma hora ele foge, ou se vira contra você.

É por isso que de vez em quando eu fico pensando no meu trabalho, sobre como ele é baseado nas ansiedades e inseguranças das pessoas.

Eu até entendo que a gente vive num país onde a justiça só funciona para e a favor dos ricos, e que existe uma ilusão de que o meu trabalho substitua esse vácuo deixado pelo estado.

Mas o que funciona mesmo é deixar pra lá, e a verdade aparece. Sozinha. Como aquele leão criado no quintal. Isso porque animais selvagens criados em cativeiro uma hora acabam machucando alguém.

Assim é a mentira.

A janela do meu quarto é a única aberta no prédio do motel. Eu não me incomodo com os gemidos performáticos no quarto ao lado. Pra ser sincero eles até combinam com o Jazz melindroso tocando no meu celular.

No escuro não existem cores e eu me sinto num filme noir. Minha alma se contorce como a fumaça do cigarro que se expande e desaparece. Tomo mais um gole do veneno e sinto o meu corpo relaxar quando trago logo em seguida.

Eu sou um fantasma, uma alma penada.

No Brasil, em pleno Século XXI eu ganho a vida como detetive particular - ou seria pilantra particular? Em plena pós-modernidade eu sou um cara de meia-idade com uma profissão extinta e hábitos ultrapassados. Quem ainda fuma? Quem ainda escuta jazz?

A mulher no quarto ao lado começa a gritar de um jeito estranho, mas isso não é assunto meu.

Nada acontece... Nada acontece.

Café & Cigarros (amostra)Where stories live. Discover now