Caridade

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Nada acontecia quando a senhora humilde entrou no meu escritório que fica num edifício sujo cheio de advogados de porta de cadeia, videntes e prostitutas. O jazz tocava

Me olhou com súplica sob seus óculos fundo de garrafa e sem falar nada procurou nas bolsas de plástico descartável, em meio a um emaranhado de papel sacou uma foto que colocou sobre a mesa.

Mais um doido.

Esse é o pior tipo de cliente, aquele que não bate bem das bolas e ainda pensa que você vai trabalhar de graça pra eles. Mas eu escuto qualquer história sobre mais um cara que desaparece sem deixar rastros, e mais uma vez escuto reclamações sobre a ineficiência da polícia.

Conto pra ela que minha diária é duzentos reais.

A história da dona é de cortar o coração. Ela fala sobre como o seu filho é trabalhador, sobre como ele nunca tinha se envolvido com coisas erradas e desapareceu depois de uma batida policial na favela.

Tocante. Mas a minha diária continua sendo duzentos reais.

Eu penso comigo mesmo sobre quantos "rapazes de família" já encontrei na valeta, executados por dívidas com o tráfico. Ou mesmo na polícia que é tão confiável quanto um bando de cães raivosos.

A senhora seca as lágrimas. Ela sabe que isso não vai funcionar comigo. Ele deve ter percebido a apatia no meu semblante e a forma como eu olho pros arquivos em cima da minha mesa.

Esses arquivos são uma história engraçada:

Quando eu comecei nesse ramo, após perder meu outro emprego, meu escritório era completamente organizado e cheirava a óleo de peroba. Pensava que isso ia atrair os granfinos pra minha armadilha.

Foi então que um dos advogados pilantras do prédio me chamou na sala para "orçar" um serviço.

O escritório do cara tinha papel saindo pelo ladrão, tudo com letra pequena, cheio de carimbos e assinaturas. Pensei: o cara deve ser importante, olha a quantidade de serviço que ele tem.

Na minha inocência comentei isso com ele. O safado do doutor me disse que havia aprendido essa técnica quando trabalhou no serviço público. Sempre tenha a mesa bagunçada, ele me aconselhou, por que parece que o sujeito está sempre atarefado. Isso espanta os curiosos, atrai respeito daqueles que trabalham de verdade.

Por isso tratei de encher minha estante de caixas de arquivos. Consegui uns livros de direito velhos que, num país que muda a lei todo dia, já haviam caducado há algumas décadas.

Eu também gosto de registrar meus casos. Estou fazendo isso agora. Mas imprimo várias cópias desses registros e deixo os mais recentes sobre a mesa.

Continuei olhando para o arquivo sobre a mesa, meio que dizendo a idosa que se ela não fosse me pagar eu tinha mais o que fazer. A pobre coitada estava em silêncio.

Nada acontece.

Café & Cigarros (amostra)Where stories live. Discover now